quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Constituição que vigorou por 24 horas no Brasil


Direito Constitucional


Uma Constituição que vigorou no Brasil por 24 horas. Eis uma das possíveis definições para essa importante e quase desconhecida Constituição de Cádiz, aprovada pelas Cortes Gerais e Extraordinárias na Espanha de 1812.[1]
Paulo Bonavides, um dos grandes responsáveis pela divulgação no Brasil (e não apenas neste país) da Constituição de Cádiz, que celebra seu bicentenário este ano, assim relatou as vicissitudes desse texto normativo em nosso território:[2]
“Três vezes a Constituição espanhola de Cádiz, monumento do liberalismo monárquico, teve ingresso efêmero no constitucionalismo luso-brasileiro.”

A primeira vez em Portugal, ao ensejo da rebelião popular de 11 de setembro de 1821, apoiada por forças do exército; houve porém um recuo, de tal sorte que, segundo Aurelino Leal, passaram a vigorar, tão somente, ‘disposições da Constituição espanhola que se referiam ao sistema e processo eleitoral, e com a condição de que as Cortes Constituintes e Extraordinárias convocadas não alterassem na constituição futura de Portugal as suas boas essências e nem admitissem princípios menos liberais’; Leal, Aureliano, ‘História Constitucional do Brasil’, op. cit. PP. 17 e 18.
A segunda vez, na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, de maneira provisória e nos mesmos termos de sua adoção em Portugal, conforme assinala o sobredito historiador (Leal, Aurelino, op. cit., p. 18). A seguir, pela terceira vez, no Rio de Janeiro, por apenas 24 horas. Decretada no dia 21 de abril foi revogada no dia seguinte, por dois decretos de D. João VI, que escreveu assim, como rei, a página que melhor lhe biografa o caráter, a irresolução e principalmente a covardia da personalidade”.[3]
As raízes da Constituição Gaditana remontam ao início da rebelião contra os franceses, cujas tropas ocupavam a Espanha, no famoso “Levante de 2 de maio de 1808”, ocorrido em Madri e cujos rebeldes foram fuzilados no dia seguinte, como se pode ver no conhecido quadro de Francisco de Goya. Após a derrota dos insurgentes e o massacre francês, Espanha ergueu-se em armas e integrou-se às chamadas “Guerras Peninsulares”, que envolveram tropas francesas, de um lado, e britânicas (e de aliados), portuguesas e espanholas, de outro.
A monarquia espanhola, que inicialmente tentara se compor com Napoleão Bonaparte, dele se tornando aliada e contribuindo com o esforço de guerra, foi traída e os franceses indicaram José Bonaparte para o trono de Espanha.
Num quadro de profunda instabilidade política, com a guerra peninsular ainda em curso, as Cortes Gerais e Extraordinárias foram convocadas e iniciaram a elaboração de um texto constitucional para Espanha. Esse trabalho foi concluído aos 12 de março de 1812, na cidade portuária de Cádiz (de onde partiram os navios franco-espanhóis para a derrota na Batalha de Trafalgar em 1805). Sua vigência foi curta: de 1812 até 1814, quando o rei Fernando VII foi reentronizado e, em momento posterior, repudiou a liberal Constituição de Cádiz.[4]
Mas, o que tem de tão especial esse documento histórico?
O texto gaditano serviu de fonte de inspiração para as constituições liberais do século XX, especialmente a “Constituição vintista” de Portugal,[5] e “sobretudo, o constitucionalismo europeu e ibero-americano que antecedeu a Kelsen (1920)”[6].
A Constituição de Cádiz, por outro lado, formulou uma série de princípios absolutamente inovadores para seu tempo e que repercutiram até nosso século. A ideia de que a soberania “reside esencialmente en la Nación, y por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes fundamentales” (art. 3o) é perturbadora, de modo especial para um tempo em que a legitimidade do poder descansava na vontade de Deus e no direito divino dos monarcas absolutos. Com maior vigor, o artigo 2o também proclamava que: “A nação espanhola é livre e independente, e não é nem pode ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa.”
O objetivo do governo deveria ser a “felicidade da Nação”, porquanto “o fim de toda sociedade política não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem” (art. 13). A natureza “moderada” (não absoluta) da monarquia era estabelecida (art. 14) e a divisão dos poderes restava bem clara na afirmação de que “a potestade de fazer leis reside nas Cortes com o Rei” (art. 15).
No artigo 172, fixavam-se diversas “restrições à autoridade do Rei”, ao exemplo da proibição de que ele impedisse a realização das Cortes e de que ele se ausentasse do Reino sem consentimento parlamentar. Para uma época patrimonialista, não se esqueceram de proibir o monarca de “alienar, ceder ou permutar província, cidade, vila ou lugar, nem parte alguma, por menor que seja, do território espanhol”.
De maneira inédita para os padrões constitucionais do século XIX (e de grande parte do século XX), a Constituição de Cádiz elencava os ministérios do governo, em seu artigo 222. O nível de detalhamento também chegava ao Poder Judiciário, a quem competia, de modo exclusivo, “aplicar as leis nas causas cíveis e criminais” (art. 242), sendo certo que “nem as Cortes, nem o Rei poderão exercer, em nenhum caso, as funções judiciais, avocar causas pendentes, nem mandar abrir juízos extintos” (art. 243).
A defesa da Constituição poderia ser provocada por qualquer cidadão: “Todo espanhol tem direito de representar às Cortes ou ao Rei para reclamar a observância da Constituição” (art. 373). Cabendo às Cortes tomar em consideração “as infrações da Constituição que lhes tiverem sido presentes, para lhes dar o conveniente remédio, e fazer efetiva a responsabilidade dos que tiverem a ela contravindo” (art. 372).
Em seus 384 artigos, a Constituição de Cádiz dedicava títulos à administração das unidades do Reino, à educação pública, às Forças Armadas e às emendas constitucionais. Como salienta Eduarda Chacon, “o artigo 286 preceituava a duração razoável do processo e o artigo 291 assegurava ao cidadão o direito de não produzir provas contra si mesmo. O artigo 296, por sua vez, previa o direito à liberdade mediante pagamento de fiança. Na sequência, o artigo 302 voltava a dispor sobre a legalidade, o artigo 303 proibia a tortura e o artigo 304 vedava o confisco”.[7]
Não é sem causa afirmar que o texto constitucional gaditano corresponde ao conceito moderno de uma “Constituição dirigente”, ao exemplo das constituições vigentes em Portugal e no Brasil. Outro aspecto digno de interesse para os estudiosos contemporâneos está na tese muita vez repetida de que o constitucionalismo liberal do Oitocentos foi sintético e não preocupado com direitos sociais ou com algo além da estrutura do Estado e um catálogo mínimo de direitos fundamentais. Cádiz, quando pouco, deveria figurar como uma saliente exceção a essa tese. Eduardo García de Enterría, com maior elegância e precisão, já o afirmara em um escrito de 1986.[8]
Resta contar um pouco sobre a efemeridade de sua vigência no Brasil, ainda ligado a Portugal por laços coloniais.
O episódio deu-se em abril de 1821, num sábado, dia de eleição dos deputados às Cortes em Portugal, que elaboravam uma nova Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Conforme o relato de Eduarda Chacon, havia grupos favoráveis à permanência de D. João VI no Rio de Janeiro e outros que defendiam a imediata adoção do texto de Cádiz, “enquanto as Cortes Constituintes de Lisboa não concluíssem os seus trabalhos”. E prossegue a autora: “‘Queremos Cádiz!’, gritavam. Diante da reivindicação que lhe foi levada por um grupo do povo, sob chuva torrencial, não viu o Rei opção, senão aceitá-la”.[9]
Naquele alvoroço e com receio de um levante, D. João VI determinou que se observasse no Brasil, enquanto não ultimados os trabalhos constituintes em Portugal, a Constituição de Cádiz.
Os defensores da monarquia absoluta, no entanto, reverteram a situação: “Daí em diante, entusiasmado com o atendimento de sua reivindicação, o povo achou por bem impedir a saída dos navios que levariam a Corte Real de volta a Portugal. Evidentemente, houve forte retaliação e o saldo foi um bom número de mortos. Importa dizer apenas que o episódio serviu para dar força aos soldados que, dirigindo-se ao palácio real, de lá somente se retiraram quando foi assinado um novo decreto, revogando o anterior, (...) no qual constava que sendo a Constituição de Cádiz elaborada por ‘homens mal-intencionados e que queriam a anarquia (…) Hei por bem Determinar, Decretar, y Declarar por nulo o Ato feito ontem’.”[10]
Estudar o texto de Cádiz, para além desse pitoresco episódio da História brasileira, é descobrir que, em pleno alvorecer do século XIX, num tempo de guerra e de ocupação territorial, o grande povo de Espanha (nesse aspecto, simbolizando a latinidade) ofereceu ao mundo um respeitável, inédito e visionário contributo às instituições jurídico-políticas. O desconhecimento de Cádiz diz muito também sobre a visão pouco favorável que temos a nosso próprio respeito. E não apenas no Direito.[11]

[1] Há certa controvérsia em torno da grafia em português do nome dessa cidade espanhola. Em castelhano, escreve-se Cádiz, forma que foi escolhida por este colunista. Existem, porém, os que defendam o uso da forma Cádis.
[2] Paulo Bonavides, desde 2003, tem divulgado e estimulado os estudos sobre a Constituição de Cádiz. Essa é uma matéria de grande importância para o Direito Constitucional Comparado e não tem despertado o merecido interesse na doutrina brasileira contemporânea, com algumas importantes exceções:   CHACON, Eduarda. Bicentenário da Constituição de Cádiz, a primeira carta magna brasileira. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 80, p. 418, jul. 2012; BARRETTO, Vicente de Paulo. Viva la pepa: a história não contada da Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 172, n. 452, p. 201-223, jul./set. 2011; CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história : origem & reforma : da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. rev. e ampl. até a Emenda Constitucional nº 52/2006. Rio de Janeiro : Revan, 2006; BONAVIDES, Paulo. O constitucionalismo espanhol e seu influxo no Brasil : de Cádiz a Moncloa. In. AA.VV. La Constitución de 1978 y el constitucionalismo iberoamericano. Madrid : Ministério de la Presidencia, Secretaria General Técnica : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 197-219.
[3] BONAVIDES, Paulo.  As nascentes do constitucionalismo luso-brasileiro, uma análise comparativa. p. 197-235 (nota de rodapé 22). Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1510/9.pdf. Acesso em 26-10-2012.
[4] MORAES, Oswaldo de. Formação do estado federal brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 55, n. 368, p. 12-23, jun. 1966.
[5] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos avançados. v.14, n. 40, São Paulo set.-dez. 2000.
[6] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[7] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[8] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun. 1986.
[9] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[10] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[11] É de ser registrado que, na abertura do 8º Fórum Parlamentar Ibero-Americano, ocorrido em Cádiz, Espanha, aos 24 de outubro de 2012, José Sarney, presidente do Senado Federal, enalteceu o papel da Constituição de Cádiz na formação constitucional brasileira: “Quando falamos em separação dos poderes, em representação popular, em garantias individuais, como a de não ser preso sem ordem judicial, a proibição de tortura e confisco de bens, a inalienabilidade da casa própria, a liberdade de expressão e, na própria noção de soberania, estamos, mesmo sem saber, repetindo os homens que, aqui, no dia 19 de março de 1812, proclamaram ao mundo a Constituição das Liberdades” (Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/24/na-espanha-sarney-reafirma-importancia-da-constituicao-de-cadis. Acesso em 25-10-2012).
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-31/direito-comparado-constituicao-vigorou-24-horas-brasil


Mensalão e a telemidiatização da Justiça

Artigo do dia

Se o STF flertava —  já há algum tempo — com sua incondicionada adesão à era do populismo penal midiático, típico da sociedade do espetáculo (Debord), agora não existe mais dúvida. Sejam todos bem-vindos ao mundo do espetáculo judicial telemidiático. Como funciona a Justiça telemidiatizada? Não quero valorar, apenas descrever.
Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, sim, telesessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerrelatortelerrevisor etc.
Não há dúvida de que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de se perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência. 
A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas (estrelas midiáticas) e, desta forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico.
A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolva seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros).

O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporciona (como toda televisão) tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens de Ayres Britto do tipo “o voto minerva me enerva”.
A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa(alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer.
O STF acaba de sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc não se tornem meros tigres de papel.
Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os rasteiros anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos, ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “Vossa Excelência advogado para o réu” etc).
Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos — entre eles — de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte (falando com o seu público).
O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?
São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. As balizas da Justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga).

Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc).   Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo? 
*Luiz Flávio Gomes, jurista, foi promotor de justiça (1980-83), juiz (1983-1998) e advogado (1999-2001). www.professorlfg.com.br

terça-feira, 30 de outubro de 2012

Viabilidade jurídica da alteração do registro civil do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual


DIREITO CIVIL

A questão da alteração no Registro Civil da condição do indivíduo que modificou cirurgicamente o seu sexo ainda fomenta discussões entre os estudiosos do Direito Civil.
A ausência de regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, apenas contribui para a disparidade nas decisões judiciais acerca do tema em liça. Desta forma, é necessário verificar se o direito brasileiro alberga, ou não, a possibilidade de, em tendo sido feita a cirurgia de redesignação sexual, poder-se alterar a sua condição também no Registro Civil, tanto no que respeita ao nome e prenome do indivíduo, como igualmente no que tange à indicação do sexo constante no assento registral.
Neste sentido, é importante acentuar que o transexual, para a medicina, é a pessoa que sofre de um transtorno de identidade de gênero permanente, razão pela qual o transexualismo encontra-se, inclusive, relacionado no CID (Classificação Internacional de Doenças). Tal transtorno, de ordem psicológica e médica, trata-se de uma condição em que a pessoa nasce com um determinado sexo biológico, mas se identifica com os indivíduos pertencentes ao gênero oposto, o que o leva a um profundo desconforto, decorrente da dissociação entre o sexo físico e aquele outro ao qual julga pertencer, com repulsa ao fenótipo apresentado e propensão à autoimolação e ao autoextermínio.
No Brasil, os critérios para a realização da cirurgia de mudança (ou adequação de sexo) são atualmente estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, nos termos da Resolução nº 1.652/2002, que revogou a anterior regulamentação do CFM – a Resolução nº 1.482/97[1].

A Resolução nº 1.652/2002, de seu turno, autorizou a realização da cirurgia de transgenitalização do tipo neocolpovulvoplastia (transformação do fenótipo masculino para feminino) e, ainda em caráter experimental, da cirurgia do tipo neofaloplastia (transformação do fenótipo feminino para o masculino). Ressalte-se que é a avaliação médica específica que identifica o transexualismo[2] e que permite conferir o subsídio necessário à realização da cirurgia, a qual exige, consoante a Resolução nº 1.652/2002, uma série de requisitos prévios para a sua autorização[3], como é o caso do acompanhamento médico multidisciplinar para demonstração da necessidade do procedimento cirúrgico pleiteado.
Postas essas considerações, é relevante parametrizar que há posições diametralmente opostas no tocante à possibilidade jurídica quanto à alteração do Registro Civil do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual.
De um lado, há os que defendem a impossibilidade de alteração, como foi o caso de julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o qual se fundou primordialmente em três aspectos para concluir pelo indeferimento do pedido de alteração do assento: em primeiro lugar, que haveria impossibilidade de designação do transexual como mulher, em segundo lugar, que a regra é a inalterabilidade do Registro Civil e, por fim, que tal posicionamento se justificaria também para proteção de terceiros quanto a um futuro matrimônio. Nesse sentido, portanto, colige-se o acórdão:
DIREITO DE FAMÍLIA - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE NASCIMENTO - ALTERAÇÃO DE GÊNERO - TRANSEXUAL - IMPOSSIBILIDADE. A PARTIR DA REALIZAÇÃO DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, SURGE UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS JURÍDICOS ATUAIS, QUAL SEJA, A POSSIBILIDADE DE REDESIGNAÇÃO, OU ADEQUAÇÃO, DO SEXO CIVIL, REGISTRADO, AO SEXO PSICOLÓGICO, NOVO SEXO ANATÔMICO, E OS EFEITOS DAÍ RESULTANTES. NÃO HÁ, NEM JAMAIS HAVERÁ, POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAR UM INDIVÍDUO NASCIDO HOMEM EM UMA MULHER, OU VICE VERSA. POR MAIS QUE ESSE INDIVÍDUO SE PAREÇA COM O SEXO OPOSTO E SINTA-SE COMO TAL, SUA CONSTITUIÇÃO FÍSICA INTERNA PERMANECERÁ SEMPRE INALTERADA. ASSIM, AFIGURA-SE INDEVIDA A RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO DE TRANSEXUAL REDESIGNADO, MORMENTE PARA SALVAGUARDAR DIREITO DE TERCEIROS QUE PODEM INCORRER EM ERRO ESSENCIAL QUANDO A PESSOA DO TRANSEXUAL, NA HIPÓTESE DE ENLACE MATRIMONIAL.  
(Apelação Cível  1.0024.07.595060-0/001, Rel. Des.(a) Dárcio Lopardi Mendes, 4ª CÂMARA CÍVEL, julgamento em 26/03/2009, publicação da súmula em 07/04/2009)
De outro lado, encontra-se a corrente que entende ser juridicamente admissível a alteração no registro civil do transexual que realizou a cirurgia, entendimento esse alicerçado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em caso paradigmático, de relatoria do memorável Ministro Menezes Direito[4], foi adotada posição favorável à alteração do registro civil, com esteio no princípio da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, este princípio, que ostenta a condição de fundamento da República Federativa do Brasil, refere-se, de acordo com Alexandre de Moraes, a “um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”[5].
Nessa toada, Ingo Sarlet[6] assevera que restrições ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana somente são admissíveis quando houver conflito direto entre as dignidades de pessoas diversas. A contrario sensu, portanto, em havendo unicamente a necessidade de preservação da Dignidade do indivíduo transexual, é de se concluir pela possibilidade de alteração do registro civil.
Cabe ao Judiciário analisar o pedido proposto de alteração do assento, em razão da cirurgia realizada, tanto no que diz respeito ao nome, quando no tocante ao sexo do indivíduo.
O nome civil é a forma pela qual se identificam as pessoas naturais nos aspectos da sua vida familiar e social, estando assim diretamente ligado com a individualização da pessoa e, por isso, aos direitos da personalidade.
Desta maneira, em sendo a identidade pessoal uma garantia da dignidade da pessoa humana, percebe-se que não há como afastar a correlação entre tais preceitos. Sobre a questão, percebe-se que a Lei nº 6.015/73, em seus artigos 57 e 58, previu a relativa imutabilidade do nome. É o teor dos dispositivos, in verbis:
Art. 57 - Qualquer alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente, após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandato e publicando-se a alteração pela imprensa.
[...]
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.
Desta feita, sendo o direito ao nome uma das expressões do direito da personalidade, a possibilidade de o juiz permitir a alteração apresenta-se como sendo a posição consentânea com o asseguramento de tais princípios inerentes à pessoa humana. Por sua vez, é certo que de nada adiantará a alteração do nome sem a alteração formal do sexo, porquanto tal situação continuaria a perpetuar a angústia psicológica do indivíduo transexual.
Neste ponto, há dissonância entre julgados que admitem a modificação do registro de nascimento. De um lado, há os que se posicionam que deverá haver a inclusão no registro civil da denominação “transexual”[7], ao passo que outros entendem que poderá haver a inclusão do sexo para qual foi procedida a mudança, fazendo-se referência à margem do assento que a alteração foi procedida por determinação judicial[8].
Esta última corrente, que admite não apenas a alteração do registro civil para modificação do nome, como igualmente do sexo para o qual foi realizada a redesignação sexual, é a que se afigura mais coerente com a linha de raciocínio que vem sendo deslindada, referente à preservação do princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana.
De fato, não obstante a primeira posição (que admite a modificação do sexo para “transexual”) constitua-se em uma evolução em face da negativa da alteração do sexo no registro, ela não consegue atender ao princípio no qual alega se fundar, uma vez que há verdadeiro prolongamento da negativa quando se impinge a classificação de “transexual” no registro civil, assim como dos danosos efeitos para o indivíduo, decorrentes da não identificação com o seu gênero biológico.
Assim, a tutela jurisdicional, para ser completa e corresponder ao efetivo atendimento do princípio da intangibilidade da pessoa humana, requer a alteração do nome e do sexo, ainda que seja feita a referência de que houve alteração por ordem judicial, a ser procedida unicamente no assento de nascimento, preservando, deste modo, o interesse de terceiros, bem como o direito à intimidade, à vida privada, à honra, à saúde e à imagem do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENEVIVA, Walter. Lei dos Registros Públicos Comentada. 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, vol. 1, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª ed. atualizada até EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007.
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome e Sexo – Mudanças no Registro Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

Notas
[1] Deve-se registrar que, nos termos da Resolução nº 1.482/97, ambas as modalidades de cirurgia de transgenitalização foram autorizadas a título experimental, como tratamento dos casos de transexualismo.
[2] Quanto aos critérios para o reconhecimento do transexualismo a Resolução nº 1.652/2002, previu, em seu artigo 3º, que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico natural;
2) Desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos mentais.
[3] Art. 4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra, cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento conjunto: 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica. Parágrafo 2º - As equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a ocupação do cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o consentimento livre e esclarecido. 
[4] Mudança de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino, e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra, indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 678.933/RS, Rel. Ministro  Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª T., julgado em 22/03/2007, DJ 21/05/2007, p. 571)
[5] MORAES, Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª ed. atualizada até EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007, págs. 60-61.
[6] SARLET, Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, especialmente p. 124-141, apud MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO,  Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2009, pág. 174.
[7] Nesse sentido, os seguintes julgados: TJRS - Ap. Cív. 591019831, rel. Des. Gervásio Barcellos, j. 5-6-1991; TJRS - Ap. Cív. 598404887, rel. Des. Eliseu Gomes Torres, j. 31-5-2000, citados por DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, págs. 278-282.
[8] TJSP – Ap. Cív. 439.257-4/3-00, rel. Des. Salles Rossi, 8ª Câmara de D. Privado, j. 19-4-2007; TJSP Ap. Cív. 492.524-4/0-00, rel. Des. Ary José Bauer Júnior, 2ª Câmara de D. Privado, j. 3-7-2007; TJSP – Ap. Cív. 427.435-4/3, rel. Des. Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D. Privado, j. 11-11-2008. TJSP – Ap. Cív. 617.871-4/2, rel. Des. Maia da Cunha, 4ª Câmara de D. Privado, j. 19-02-2009; TJSP – Ap. Cív. 514.688-4/6, Rel. Des. Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D. Privado, j. 31-3-2009.

Procuradora Federal. Pós-Graduada em Direito Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

Contrabando de cigarros não pode ser crime de bagatela


DIREITO PENAL

O Tribunal Regional Federal da 4ª Região reformou sentença que absolveu um homem flagrado pela Polícia Rodoviária Federal com expressiva quantidade de cigarros de origem estrangeira. Ele trafegava numa estrada da zona rural de Santa Terezinha do Itaipu, cidade paranaense próxima à fronteira com o Paraguai, de onde teria trazido a mercadoria.

A decisão foi da 7ª Turma, em julgamento de Apelação Criminal realizado dia 17 de outubro. A absolvição sumária em primeira instância se deu com base no princípio da insignificância, visto que o valor da mercadoria não ultrapassava R$ 12 mil. A decisão levou o Ministério Público Federal a recorrer contra a sentença no TRF-4.

Conforme o relator da Apelação, desembargador federal Élcio Pinheiro de Castro, esse tipo de crime transcende o limite fiscal, visto que ofende a saúde pública e a atividade industrial brasileira. O desembargador se aliou ao posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal, que considera incabível o uso do princípio da insignificância em casos de contrabando. O entendimento do relator foi acompanhado pelos demais integrantes turma.

“Ocorrendo flagrante de posse de cigarros de procedência estrangeira, sem a devida liberação alfandegária e dos órgãos sanitários, a sentença que absolveu sumariamente o acusado deve ser reformada, sendo imperativo o prosseguimento do processo criminal”, afirmou Castro.
Com a decisão, os autos voltaram ao primeiro grau e devem ser reabertos para instrução e julgamento. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.

Clique aqui para ler a decisão. 

Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-30/contrabando-cigarros-nao-crime-insignificante-decide-trf

Acordos nos Procons poderão ter validade judicial


DIREITO CIVIL


O Conselho Nacional de Justiça e o Ministério da Justiça firmam nesta terça-feira (30/10) um acordo, com o objetivo de possibilitar que as conciliações feitas entre consumidores e empresas nos órgãos de proteção e defesa do consumidor tenham validade judicial. Assim, caso o prestador de serviço não cumpra o acordo firmado nos Procons, poderá ser executado diretamente pelo Poder Judiciário, sem a necessidade de o cliente entrar com um processo na Justiça.


Atualmente, se um acordo firmado no Procon não é cumprido, o consumidor pode ficar com uma sensação de impunidade, pois tem que despender mais esforços e recorrer ao Judiciário para ver seu direito garantido. Com a nova medida, que será perseguida a partir do acordo, o cliente não precisará dar entrada em novo processo na Justiça, pois o acordo firmado nos Procons terá validade de decisão judicial.

A iniciativa foi proposta pelo Fórum da Saúde, instituído no Judiciário para desenvolver ações capazes de prevenir e solucionar de forma ágil demandas judiciais relacionadas ao setor. Quando for implementada, no entanto, a medida valerá para qualquer tipo de demanda levada pelos consumidores aos Procons e não apenas as relacionadas à saúde.
Segundo o juiz auxiliar da presidência do CNJ, Fernando Mattos, a ideia é que a parceria contribua para fortalecer o sistema de proteção dos direitos do consumidor no país. A assinatura do acordo acontece às 16h30 no gabinete do presidente do Supremo Tribunal Federal e do CNJ, ministro Ayres Britto. Com informações da Assessoria de Imprensa do CNJ.

Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-30/acordos-entre-consumidor-empresa-procons-podem-validade-judicial

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Da posse em nome do nascituro


DIREITO CIVIL
Seção XII
Da Posse em Nome do Nascituro
Art. 877. A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez, requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la por um médico de sua nomeação.
§ 1º O requerimento será instruído com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor.
§ 2º Será dispensado o exame se os herdeiros do falecido aceitarem a declaração da requerente.
§ 3º Em caso algum a falta do exame prejudicará os direitos do nascituro.
Art. 878. Apresentado o laudo que reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro.
Parágrafo único. Se à requerente não couber o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador ao nascituro.


1.Breves apontamentos de direito material
Para a adequada compreensão do instituto sob exame, afigura-se indispensável adentrar em vários aspectos de direito material, até porque os artigos 877 e 878 do CPC instrumentalizam o exercício das garantias estampadas no artigo 2° do Código Civil, que dispõe, in verbis:
"A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".
Verifica-se de plano que a norma relaciona o surgimento da personalidade civil com dois marcos temporais de grande relevância: a concepção e o nascimento com vida.
Com efeito, definir o momento em que tem início a personalidade jurídica de um ser vivo não é tarefa simples.
No direito comparado há grande diversidade quanto ao seu termo inicial: algumas legislações aludem ao nascimento (verbi gratia: Código Civil alemão, art. 1°; Código Civil português, art. 66; e o Código Civil italiano, art. 1°). Outros adotam a concepção (início da vida intra-uterina) como termo inicial da personalidade, a exemplo do que dispõe o Código Civil argentino, em seu art. 70. Corrente diversa adota solução eclética: se a criança nasce com vida, a sua capacidade remonta à concepção (v.g.: Código Civil francês). Outros sistemas apegam-se à viabilidade da vida: o Código Civil espanhol fixa um prazo de vinte e quatro horas para que o recém nascido adquira personalidade (Cf. Washington de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil – Parte Geral, 35ª ed., p. 59).
No direito pátrio há ao menos três fortes correntes sobre o início da personalidade: a natalista, a da personalidade condicional (que é adotada pelo Código Civil) e a concepcionista. Para a primeira a personalidade tem início a partir do nascimento com vida; a segunda sustenta que a personalidade se forma com a concepção, condicionando-a ao nascimento com vida (também denominada concepcionista imprópria); a terceira defende que a personalidade se inicia com a concepção (Cf. Silmara J. A. Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, p. 145).
Independentemente da corrente adotada, é certo que "há para o feto uma expectativa de vida humana, uma pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os eventuais direitos" (Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 61).
A festejada civilista Maria Helena Diniz sustenta que o nascituro possui "personalidade jurídica formal" no que atina aos direitos personalíssimos e passa a ter "personalidade jurídica material", alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida (Curso de Direito Civil Brasileiro, 1° vol., 21ª ed., p. 185).


2.Notícia histórica
Não é de hoje que se tutelam os interesses dos nascituros: ao tempo dos romanos, Paulo já afirmava que nasciturus pro iam nato habetur quando de eius commodo agitur, ou seja, "o nascituro se tem por nascido, quando se trata se seu interesse" (Cf. Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 59).
Pontes de Miranda lembra que as Ordenações Filipinas (Livro III, Título 18, §7°, alínea 2) dispunham sobre a posse que pertence à mulher prenhe, "por razão da criança que tem no ventre", assim como as Ordenações Afonsinas (Livro III, Título 36, §7°) (Comentários ao Código de Processo Civil, tomo 9, ano 1959, p. 224).


3.Conceitos
Assim, temos que nascituro é o termo técnico-jurídico de origem latina (nasciturus) que designa "aquele que há de nascer" (Cf. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 18ª ed., p. 549).
Nas palavras do mestre Humberto Theodoro Júnior, "nascituro é o fruto da concepção humana que se acha vivendo no ventre materno, vivendo, ainda, em subordinação umbilical" (Processo Cautelar, 23ª ed., p. 379).
Já a palavra posse, que tem origem etimológica no vocábulo latino possessio, revela "o poder material sobre a coisa. A circunstância de ter em mão ou em poder" (De Plácido e Silva, op. cit., p. 620).


4.Natureza jurídica da ação
A quase unanimidade da doutrina inclina-se em afirmar que a posse em nome do nascituro não possui natureza cautelar.
Dizemos quase unanimidade porque logramos localizar na doutrina nacional apenas dois processualistas de escol que tenham enxergado no instituto natureza cautelar, são eles: Pontes de Miranda e Ovídio Baptista.
Pontes de Miranda, segundo Silmara Chinelato, "aceita a natureza cautelar da posse em nome do nascituro, que se refere apenas a interesses patrimoniais" (Tutela Civil do Nascituro, p. 277).
Ovídio Baptista chegou a afirmar que "as medidas de proteção tomadas em defesa dos interesses do nascituro, correspondem a pretensões cautelares, pois asseguram-se direitos do que vai nascer, mas só o nascimento posterior dará legitimidade aos atos de conservação e proteção cautelar" (As ações Cautelares e o Novo Processo Civil, p. 229).
Todavia, reviu seu posicionamento na obra "Do Processo Cautelar", asseverando que "não é próprio atribuir-lhe, como antes fizéramos, a natureza de pretensão cautelar" (Página 489).
Logo, não estamos convictos de que de Pontes de Miranda permaneceria com o mesmo entendimento, acaso estivesse vivo.
O mestre Humberto Theodoro Júnior, alicerçado em José Maria Rosa Tesheiner afirma que "se a posse cessa com o nascimento, a incerteza é quanto ao nascimento com vida, e não quanto ao conteúdo de outra sentença. A tutela é preventiva e provisória, mas não há ação principal a ser proposta, porque não há litis-regulação. Tal como se vê do texto legal, a ação é limitada à segurança dos direitos. Por meio dela separa-se o patrimônio que possa caber ao nascituro, o qual será entregue ao titular do pátrio poder, ou do tutor" (Processo Cautelar, p. 380).
E arremata com o seguinte raciocínio:
"Não pressupondo o periculum in mora, nem tendendo a assegurar o equilíbrio das partes numa situação de fato sobre que, necessariamente, haja de incidir o provimento jurisdicional visado por outro processo, não há como falar em ação cautelar" (Idem, p. 381).
Luiz Orione Neto engrossa o coro dos partidários deste entendimento, salientando que o "fundamento (causa petendi) da posse em nome do nascituro é o ‘estado de gravidez’ (art. 877), não a existência de situação perigosa" (Processo Cautelar, p. 413).
Para Antonio Cláudio da Costa Machado a posse em nome do nascituro não só dispensa o periculum in mora, como também o fumus boni iuris, "porque esse procedimento não é acessório de nenhum outro" (Código de Processo Civil Interpretado, p. 1306).
Mas qual a natureza jurídica da ação?
Cuida-se de mero procedimento de jurisdição voluntária, "pois exibe como finalidade essencial permitir a habilitação do nascituro no inventário do de cujus de quem é herdeiro legal ou testamentário, ou legatário, e a investidura nos direitos daí decorrentes" (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comentários ao Código de Processo Civil, v. VIII, t. II, p. 375/376 apud Luiz Orione Neto, op. cit., p. 414).


5.Legitimação
A legitimidade ativa é atribuída à mulher que tem o nascituro no ventre.
Reza o art. 877, caput, o seguinte:
"A mulher que, para garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez (...)".
Embora a lei utilize a expressão "mulher", cuja amplitude abarca as mulheres casadas, solteiras, conviventes, viúvas, concubinas, et cetera, também se atribui legitimidade ao pai do nascituro (em decorrência do poder familiar) e ao curador, na hipótese de mulher interdita ou destituída do poder familiar (CC, Art. 1.779: "Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro").
Na hipótese de mulher incapaz que não tenha curador, será legitimado a propor a ação o Ministério Público (Neste sentido: Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 381; Luiz Orione Neto, op. cit., p. 415).
Terão legitimidade passiva, conforme o caso concreto, os demais herdeiros que disputam a herança, o doador quando houver doação em favor de prole eventual (CC, Art. 542: "A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal") ou o testamenteiro na hipótese de legado em favor do nascituro [CC, Art. 1.799: "Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que vivas estas ao abrir-se a sucessão; (...)"].
Por fim, a intervenção do Ministério Público é obrigatória em decorrência do que dispõe do artigo 877, e, ainda que não houvesse previsão expressa, em razão do evidente interesse de incapaz, que faz incidir a regra do art. 82, I, do CPC.


6.Procedimento
Após a exposição fática a petição inicial deverá conter pedido de exame médico, por perito judicial, para comprovação da gravidez, bem como a investidura na posse dos direitos do nascituro.
Exige o §1°, do art. 877, que a petição inicial seja instruída "com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor". Ocorre, entretanto, que há casos em que o direito pleiteado não se funda em sucessão causa mortis. Nestas ocasiões haverá dispensa da certidão.
"É possível o indeferimento liminar da petição nos casos comuns de inépcia e de descabimento da pretensão pelos motivos genericamente previstos no art. 295, e em outros de impossibilidade jurídica da pretensão, como aquele em que o simples confronto de datas evidenciar a impossibilidade biológica da paternidade (mulher que, por exemplo, atribuísse gravidez ao marido, um ano após sua morte)" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 282).
Estando em termos a petição inicial, o juiz determinará a citação dos interessados para que apresentem resposta no prazo de cinco dias.
Note-se, por oportuno, que a lei não determina e nem tampouco dispensa a citação dos interessados. Todavia, o art. 812 do CPC impõe a aplicação do rito previsto nos artigos 802 e 803, que por seu turno estabelecem a necessidade do contraditório.
Se os herdeiros (interessados) "aceitarem a declaração da requerente", será dispensado o exame médico (art. 877, §2°, do CPC) e o juiz investirá a requerente na posse dos direitos do nascituro.
Antônio Cláudio da Costa Machado pondera que "a aceitação a que alude o texto tem por objeto exclusivo a gravidez da mulher e não a paternidade, que poderá vir a ser discutida em futuro procedimento litigioso" (Op. cit., p. 1308).
Escoado o prazo de cinco dias, com ou sem resposta, o juiz mandará ouvir o Ministério Publico, zelador dos interesses do nascituro, e, em ato contínuo, nomeará médico perito.
Concluindo o médico pela ausência de gravidez, o juiz proferirá sentença de improcedência da ação, lembrando sempre que as ações cautelares não fazem coisa julgada material, razão pela qual a ação poderá ser novamente proposta.
"No caso de conclusão dúbia, em razão de ser muito recente a provável gravidez, ou diante de um quadro clínico anormal, poderá o juiz determinar que se aguarde o tempo necessário à melhor definição do estado da mulher" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 383).
Já na hipótese de concluir o médico que a examinanda está grávida, o juiz estará adstrito a tal conclusão, e, "por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro" (art. 878, CPC).


7.O exame médico e sua dispensa
Ovídio Baptista sustenta que o exame médico previsto no art. 877 é exame pericial e, como tal, "há de obedecer às prescrições que o Código estabelece para as demais perícias, devendo permitir-se, segundo o art. 421, que as partes indiquem seus assistentes técnicos e formulem quesitos" (Do Processo Cautelar, p. 492).
Com posicionamento diametralmente oposto está Luiz Orione Neto, segundo o qual "no atual estágio tecnológico da medicina, é totalmente fora de propósito a realização de prova pericial, com a indicação de assistentes técnicos e formulação de quesitos para a simples e singela constatação do ‘estado de gravidez’, muitas vezes perceptível a olho nu, a dispensar até mesmo a realização de exame" (Op. cit., p. 416).
De fato, creio que neste particular assiste razão ao professor mato-grossense uma vez que o exame objetiva apenas e tão somente constatar o estado gravídico da requerente. Todavia, afasto-me do posicionamento radical posto que possam ocorrer situações peculiares em que seja demasiadamente oportuno permitir que a parte formule quesitos (v.g.: quando a determinação da data da concepção afastar a presunção de paternidade de um homem já falecido).
Outra questão interessante sobre a qual há divergência na doutrina diz respeito à possibilidade de que uma pessoa que não seja médica venha a examinar a requerente.
Humberto Theodoro Júnior (Processo Cautelar, p. 383) e Antonio Macedo de Campos (Medidas Cautelares, p. 116) são peremptórios em afirmar que apenas médicos podem examinar a gestante, muito embora também afirmem que a falta de exame não prejudicará os direitos do nascituro.
Orione Neto, muito atento à realidade interiorana do Brasil, cogita na possibilidade de que o juiz se valha "de parteira ou de outras pessoas idôneas com habilitação ginecológica" (Op. cit., mesma página ).
Pode ocorrer, ainda, o desaparecimento da gestante no curso da ação ou a sua recusa em se submeter ao exame médico. Em ambas as hipóteses a solução adotada é a mesma e decorre de simples aplicação da lei: "em caso algum a falta do exame prejudicará os direitos do nascituro" (art. 877, §3°, CPC). Logo, o juiz terá de decidir com os elementos de que dispõe.
Idêntica solução deverá ser adotada se o médico atrasar na elaboração do laudo. Neste caso, preconiza Pontes de Miranda que, o juiz deve ordenar provisoriamente todas as medidas que lhe foram postuladas em caráter definitivo e, havendo necessidade, mandar publicar edital de segurança dos direitos do nascituro até que sobrevenha sentença (Comentários ao Código de Processo Civil, p. 235).


8.Sentença e seus efeitos
A sentença, como deixa transparecer o caput no art. 878, tem natureza meramente declaratória, pois apenas reconhece os direitos do nascituro que serão exercidos provisoriamente por outrem.
"Não constitui uma situação jurídica nova; apenas comprova que, efetivamente, há alguém no exercício de um direito, que deriva do fato da gravidez e da vontade da lei, e não da sentença do juiz" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 384).
Antonio Cláudio da Costa Machado afirma que além da natureza declaratória, a sentença também possui eficácia constitutiva, "porque do seu proferimento nasce uma situação jurídica nova, que é a de alguém investido judicialmente na qualidade de possuidor dos direitos do nascituro" (Código de Processo Civil Interpretado, p. 1309).
Para Pontes de Miranda a ação é de mandamento (Op. cit., p. 236).
A tutela obtida perdurará até o parto. Havendo o nascimento com vida o detentor do poder familiar passará a exercer o usufruto legal sobre os bens do filho. Se não houver nascimento com vida, os bens deverão ser devolvidos ao monte hereditário para partilha ou sobrepartilha.
Impende salientar que a sentença não faz coisa julgada material. Orione Neto sustenta que para chegar a esta conclusão basta atentar para a natureza do processo, que se limita à verificação da gravidez e conseqüente declaração de posse preexistente (Processo Cautelar, p. 418). Para Humberto Theodoro esta situação decorre do fato de que a sentença não é de mérito (Op. cit,. p. 384).
Por fim, registre-se que a sentença poderá ser combatida através de apelação (art. 513, CPC) não dotada de efeito suspensivo (art. 520, IV, CPC) (Cf. Antônio Cláudio da Costa Machado, op. cit., p. 1309).

GUERRA JÚNIOR, Sylvio. Da posse em nome do nascituro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12n. 15598 out. 2007 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10508>. Acesso em: 25 out. 2012.

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