DIREITO CIVIL
Seção XII
Da Posse em Nome do Nascituro
Art. 877. A mulher que, para
garantia dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez,
requererá ao juiz que, ouvido o órgão do Ministério Público, mande examiná-la
por um médico de sua nomeação.
§ 1º O requerimento será instruído
com a certidão de óbito da pessoa, de quem o nascituro é sucessor.
§ 2º Será dispensado o exame se os
herdeiros do falecido aceitarem a declaração da requerente.
§ 3º Em caso algum a falta do exame
prejudicará os direitos do nascituro.
Art. 878. Apresentado o laudo que
reconheça a gravidez, o juiz, por sentença, declarará a requerente investida na
posse dos direitos que assistam ao nascituro.
Parágrafo único. Se à requerente não
couber o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador ao nascituro.
1.Breves apontamentos de direito
material
Para a adequada compreensão do
instituto sob exame, afigura-se indispensável adentrar em vários aspectos de
direito material, até porque os artigos 877 e 878 do CPC instrumentalizam o
exercício das garantias estampadas no artigo 2° do Código Civil, que dispõe, in
verbis:
"A personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção,
os direitos do nascituro".
Verifica-se de plano que a norma
relaciona o surgimento da personalidade civil com dois marcos temporais de
grande relevância: a concepção e o nascimento com vida.
Com efeito, definir o momento em que
tem início a personalidade jurídica de um ser vivo não é tarefa simples.
No direito comparado há grande
diversidade quanto ao seu termo inicial: algumas legislações aludem ao
nascimento (verbi gratia: Código Civil alemão, art. 1°; Código Civil
português, art. 66; e o Código Civil italiano, art. 1°). Outros adotam a
concepção (início da vida intra-uterina) como termo inicial da personalidade, a
exemplo do que dispõe o Código Civil argentino, em seu art. 70. Corrente
diversa adota solução eclética: se a criança nasce com vida, a sua capacidade
remonta à concepção (v.g.: Código Civil francês). Outros sistemas
apegam-se à viabilidade da vida: o Código Civil espanhol fixa um prazo de vinte
e quatro horas para que o recém nascido adquira personalidade (Cf. Washington
de Barros Monteiro, Curso de Direito Civil – Parte Geral, 35ª ed., p. 59).
No direito pátrio há ao menos três
fortes correntes sobre o início da personalidade: a natalista, a da
personalidade condicional (que é adotada pelo Código Civil) e a concepcionista.
Para a primeira a personalidade tem início a partir do nascimento com vida; a
segunda sustenta que a personalidade se forma com a concepção, condicionando-a
ao nascimento com vida (também denominada concepcionista imprópria); a terceira
defende que a personalidade se inicia com a concepção (Cf. Silmara J. A.
Chinelato e Almeida, Tutela Civil do Nascituro, p. 145).
Independentemente da corrente
adotada, é certo que "há para o feto uma expectativa de vida humana, uma
pessoa em formação. A lei não pode ignorá-lo e por isso lhe salvaguarda os
eventuais direitos" (Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 61).
A festejada civilista Maria Helena
Diniz sustenta que o nascituro possui "personalidade jurídica formal"
no que atina aos direitos personalíssimos e passa a ter "personalidade
jurídica material", alcançando os direitos patrimoniais e obrigacionais
que se encontravam em estado potencial, somente com o nascimento com vida
(Curso de Direito Civil Brasileiro, 1° vol., 21ª ed., p. 185).
2.Notícia histórica
Não é de hoje que se tutelam os
interesses dos nascituros: ao tempo dos romanos, Paulo já afirmava que nasciturus
pro iam nato habetur quando de eius commodo agitur, ou seja, "o
nascituro se tem por nascido, quando se trata se seu interesse" (Cf.
Washington de Barros Monteiro, op. cit., p. 59).
Pontes de Miranda lembra que as
Ordenações Filipinas (Livro III, Título 18, §7°, alínea 2) dispunham sobre a
posse que pertence à mulher prenhe, "por razão da criança que tem no
ventre", assim como as Ordenações Afonsinas (Livro III, Título 36, §7°)
(Comentários ao Código de Processo Civil, tomo 9, ano 1959, p. 224).
3.Conceitos
Assim, temos que nascituro é o termo
técnico-jurídico de origem latina (nasciturus) que designa "aquele
que há de nascer" (Cf. De Plácido e Silva, Vocabulário Jurídico, 18ª ed.,
p. 549).
Nas palavras do mestre Humberto
Theodoro Júnior, "nascituro é o fruto da concepção humana que se acha
vivendo no ventre materno, vivendo, ainda, em subordinação umbilical"
(Processo Cautelar, 23ª ed., p. 379).
Já a palavra posse, que tem origem
etimológica no vocábulo latino possessio, revela "o poder
material sobre a coisa. A circunstância de ter em mão ou em poder" (De
Plácido e Silva, op. cit., p. 620).
4.Natureza jurídica da ação
A quase unanimidade da doutrina
inclina-se em afirmar que a posse em nome do nascituro não possui natureza
cautelar.
Dizemos quase unanimidade porque
logramos localizar na doutrina nacional apenas dois processualistas de escol
que tenham enxergado no instituto natureza cautelar, são eles: Pontes de
Miranda e Ovídio Baptista.
Pontes de Miranda, segundo Silmara
Chinelato, "aceita a natureza cautelar da posse em nome do nascituro, que
se refere apenas a interesses patrimoniais" (Tutela Civil do Nascituro, p.
277).
Ovídio Baptista chegou a afirmar que
"as medidas de proteção tomadas em defesa dos interesses do nascituro,
correspondem a pretensões cautelares, pois asseguram-se direitos do que vai
nascer, mas só o nascimento posterior dará legitimidade aos atos de conservação
e proteção cautelar" (As ações Cautelares e o Novo Processo Civil, p.
229).
Todavia, reviu seu posicionamento na
obra "Do Processo Cautelar", asseverando que "não é próprio
atribuir-lhe, como antes fizéramos, a natureza de pretensão cautelar"
(Página 489).
Logo, não estamos convictos de que
de Pontes de Miranda permaneceria com o mesmo entendimento, acaso estivesse
vivo.
O mestre Humberto Theodoro Júnior,
alicerçado em José Maria Rosa Tesheiner afirma que "se a posse cessa com o
nascimento, a incerteza é quanto ao nascimento com vida, e não quanto ao
conteúdo de outra sentença. A tutela é preventiva e provisória, mas não há ação
principal a ser proposta, porque não há litis-regulação. Tal como se vê do
texto legal, a ação é limitada à segurança dos direitos. Por meio dela
separa-se o patrimônio que possa caber ao nascituro, o qual será entregue ao
titular do pátrio poder, ou do tutor" (Processo Cautelar, p. 380).
E arremata com o seguinte
raciocínio:
"Não pressupondo o periculum
in mora, nem tendendo a assegurar o equilíbrio das partes numa situação de
fato sobre que, necessariamente, haja de incidir o provimento jurisdicional
visado por outro processo, não há como falar em ação cautelar" (Idem, p.
381).
Luiz Orione Neto engrossa o coro dos
partidários deste entendimento, salientando que o "fundamento (causa
petendi) da posse em nome do nascituro é o ‘estado de gravidez’ (art. 877),
não a existência de situação perigosa" (Processo Cautelar, p. 413).
Para Antonio Cláudio da Costa
Machado a posse em nome do nascituro não só dispensa o periculum in
mora, como também o fumus boni iuris, "porque esse
procedimento não é acessório de nenhum outro" (Código de Processo Civil
Interpretado, p. 1306).
Mas qual a natureza jurídica da
ação?
Cuida-se de mero procedimento de
jurisdição voluntária, "pois exibe como finalidade essencial permitir a
habilitação do nascituro no inventário do de cujus de quem é
herdeiro legal ou testamentário, ou legatário, e a investidura nos direitos daí
decorrentes" (Carlos Alberto Alvaro de Oliveira, Comentários ao Código de Processo
Civil, v. VIII, t. II, p. 375/376 apud Luiz Orione Neto, op.
cit., p. 414).
5.Legitimação
A legitimidade ativa é atribuída à
mulher que tem o nascituro no ventre.
Reza o art. 877, caput,
o seguinte:
"A mulher que, para garantia
dos direitos do filho nascituro, quiser provar seu estado de gravidez
(...)".
Embora a lei utilize a expressão
"mulher", cuja amplitude abarca as mulheres casadas, solteiras,
conviventes, viúvas, concubinas, et cetera, também se atribui
legitimidade ao pai do nascituro (em decorrência do poder familiar) e ao
curador, na hipótese de mulher interdita ou destituída do poder familiar (CC,
Art. 1.779: "Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer estando
grávida a mulher, e não tendo o poder familiar. Parágrafo único. Se a mulher
estiver interdita, seu curador será o do nascituro").
Na hipótese de mulher incapaz que
não tenha curador, será legitimado a propor a ação o Ministério Público (Neste
sentido: Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 381; Luiz Orione Neto, op.
cit., p. 415).
Terão legitimidade passiva, conforme
o caso concreto, os demais herdeiros que disputam a herança, o doador quando
houver doação em favor de prole eventual (CC, Art. 542: "A doação feita ao
nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal") ou o
testamenteiro na hipótese de legado em favor do nascituro [CC, Art. 1.799:
"Na sucessão testamentária podem ainda ser chamados a suceder: I - os
filhos, ainda não concebidos, de pessoas indicadas pelo testador, desde que
vivas estas ao abrir-se a sucessão; (...)"].
Por fim, a intervenção do Ministério
Público é obrigatória em decorrência do que dispõe do artigo 877, e, ainda que
não houvesse previsão expressa, em razão do evidente interesse de incapaz, que
faz incidir a regra do art. 82, I, do CPC.
6.Procedimento
Após a exposição fática a petição
inicial deverá conter pedido de exame médico, por perito judicial, para
comprovação da gravidez, bem como a investidura na posse dos direitos do
nascituro.
Exige o §1°, do art. 877, que a
petição inicial seja instruída "com a certidão de óbito da pessoa, de quem
o nascituro é sucessor". Ocorre, entretanto, que há casos em que o direito
pleiteado não se funda em sucessão causa mortis. Nestas ocasiões
haverá dispensa da certidão.
"É possível o indeferimento
liminar da petição nos casos comuns de inépcia e de descabimento da pretensão
pelos motivos genericamente previstos no art. 295, e em outros de
impossibilidade jurídica da pretensão, como aquele em que o simples confronto
de datas evidenciar a impossibilidade biológica da paternidade (mulher que, por
exemplo, atribuísse gravidez ao marido, um ano após sua morte)" (Humberto
Theodoro Júnior, op. cit., p. 282).
Estando em termos a petição inicial,
o juiz determinará a citação dos interessados para que apresentem resposta no
prazo de cinco dias.
Note-se, por oportuno, que a lei não
determina e nem tampouco dispensa a citação dos interessados. Todavia, o art.
812 do CPC impõe a aplicação do rito previsto nos artigos 802 e 803, que por
seu turno estabelecem a necessidade do contraditório.
Se os herdeiros (interessados)
"aceitarem a declaração da requerente", será dispensado o exame
médico (art. 877, §2°, do CPC) e o juiz investirá a requerente na posse dos
direitos do nascituro.
Antônio Cláudio da Costa Machado
pondera que "a aceitação a que alude o texto tem por objeto exclusivo a
gravidez da mulher e não a paternidade, que poderá vir a ser discutida em
futuro procedimento litigioso" (Op. cit., p. 1308).
Escoado o prazo de cinco dias, com
ou sem resposta, o juiz mandará ouvir o Ministério Publico, zelador dos
interesses do nascituro, e, em ato contínuo, nomeará médico perito.
Concluindo o médico pela ausência de
gravidez, o juiz proferirá sentença de improcedência da ação, lembrando sempre
que as ações cautelares não fazem coisa julgada material, razão pela qual a
ação poderá ser novamente proposta.
"No caso de conclusão dúbia, em
razão de ser muito recente a provável gravidez, ou diante de um quadro clínico
anormal, poderá o juiz determinar que se aguarde o tempo necessário à melhor
definição do estado da mulher" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p.
383).
Já na hipótese de concluir o médico
que a examinanda está grávida, o juiz estará adstrito a tal conclusão, e,
"por sentença, declarará a requerente investida na posse dos direitos que
assistam ao nascituro" (art. 878, CPC).
7.O exame médico e sua dispensa
Ovídio Baptista sustenta que o exame
médico previsto no art. 877 é exame pericial e, como tal, "há de obedecer
às prescrições que o Código estabelece para as demais perícias, devendo
permitir-se, segundo o art. 421, que as partes indiquem seus assistentes
técnicos e formulem quesitos" (Do Processo Cautelar, p. 492).
Com posicionamento diametralmente
oposto está Luiz Orione Neto, segundo o qual "no atual estágio tecnológico
da medicina, é totalmente fora de propósito a realização de prova pericial, com
a indicação de assistentes técnicos e formulação de quesitos para a simples e
singela constatação do ‘estado de gravidez’, muitas vezes perceptível a olho
nu, a dispensar até mesmo a realização de exame" (Op. cit., p. 416).
De fato, creio que neste particular
assiste razão ao professor mato-grossense uma vez que o exame objetiva apenas e
tão somente constatar o estado gravídico da requerente. Todavia, afasto-me do
posicionamento radical posto que possam ocorrer situações peculiares em que
seja demasiadamente oportuno permitir que a parte formule quesitos (v.g.:
quando a determinação da data da concepção afastar a presunção de paternidade
de um homem já falecido).
Outra questão interessante sobre a
qual há divergência na doutrina diz respeito à possibilidade de que uma pessoa
que não seja médica venha a examinar a requerente.
Humberto Theodoro Júnior (Processo Cautelar,
p. 383) e Antonio Macedo de Campos (Medidas Cautelares, p. 116) são
peremptórios em afirmar que apenas médicos podem examinar a gestante, muito
embora também afirmem que a falta de exame não prejudicará os direitos do
nascituro.
Orione Neto, muito atento à
realidade interiorana do Brasil, cogita na possibilidade de que o juiz se valha
"de parteira ou de outras pessoas idôneas com habilitação
ginecológica" (Op. cit., mesma página ).
Pode ocorrer, ainda, o
desaparecimento da gestante no curso da ação ou a sua recusa em se submeter ao
exame médico. Em ambas as hipóteses a solução adotada é a mesma e decorre de
simples aplicação da lei: "em caso algum a falta do exame prejudicará os
direitos do nascituro" (art. 877, §3°, CPC). Logo, o juiz terá de decidir
com os elementos de que dispõe.
Idêntica solução deverá ser adotada
se o médico atrasar na elaboração do laudo. Neste caso, preconiza Pontes de
Miranda que, o juiz deve ordenar provisoriamente todas as medidas que lhe foram
postuladas em caráter definitivo e, havendo necessidade, mandar publicar edital
de segurança dos direitos do nascituro até que sobrevenha sentença (Comentários
ao Código de Processo Civil, p. 235).
8.Sentença e seus efeitos
A sentença, como deixa transparecer
o caput no art. 878, tem natureza meramente declaratória, pois apenas reconhece
os direitos do nascituro que serão exercidos provisoriamente por outrem.
"Não constitui uma situação
jurídica nova; apenas comprova que, efetivamente, há alguém no exercício de um
direito, que deriva do fato da gravidez e da vontade da lei, e não da sentença
do juiz" (Humberto Theodoro Júnior, op. cit., p. 384).
Antonio Cláudio da Costa Machado
afirma que além da natureza declaratória, a sentença também possui eficácia
constitutiva, "porque do seu proferimento nasce uma situação jurídica
nova, que é a de alguém investido judicialmente na qualidade de possuidor dos
direitos do nascituro" (Código de Processo Civil Interpretado, p. 1309).
Para Pontes de Miranda a ação é de
mandamento (Op. cit., p. 236).
A tutela obtida perdurará até o
parto. Havendo o nascimento com vida o detentor do poder familiar passará a
exercer o usufruto legal sobre os bens do filho. Se não houver nascimento com
vida, os bens deverão ser devolvidos ao monte hereditário para partilha ou
sobrepartilha.
Impende salientar que a sentença não
faz coisa julgada material. Orione Neto sustenta que para chegar a esta conclusão
basta atentar para a natureza do processo, que se limita à verificação da
gravidez e conseqüente declaração de posse preexistente (Processo Cautelar, p.
418). Para Humberto Theodoro esta situação decorre do fato de que a sentença
não é de mérito (Op. cit,. p. 384).
Por fim, registre-se que a sentença
poderá ser combatida através de apelação (art. 513, CPC) não dotada de efeito
suspensivo (art. 520, IV, CPC) (Cf. Antônio Cláudio da Costa Machado, op. cit.,
p. 1309).
GUERRA JÚNIOR, Sylvio. Da posse em nome do nascituro. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1559, 8 out. 2007 . Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10508>. Acesso em: 25 out. 2012.
Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/10508/da-posse-em-nome-do-nascituro#ixzz2AKoweZLv
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