quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Ação penal cabe só após processo administrativo



O Antigo Regime está inteiro aí: uma regra rígida, uma prática mole; assim é o seu caráter.”[1]
Com as devidas adaptações, a crítica de Tocqueville continua válida para o Direito brasileiro atual: temos uma severa lei de licitações, mas dela excepcionamos a Petrobrás[2], a Copa do Mundo, as Olimpíadas e o PAC[3]; instituímos tributos, multas e juros escorchantes, mas somos pródigos em anistias e parcelamentos especiais; multiplicamos os crimes, mas vulgarizamos o princípio da insignificância e os casos de prescrição[4]...
Não se trata aqui de conjurar todos esses enternecimentos —que são devidos em alguns casos, e mesmo insuficientes em outros—, e sim de constatar que gostamos de parecer mais duros do que somos, e até do que deveríamos ser.
Em suma: via de regra pecamos por falta, às vezes por excesso, mas sempre por meio de um jogo de esquivas que torna o nosso sistema jurídico perigosamente ininteligível e disfuncional.
A coluna de hoje cuidará dessa aporia no campo do Direito Penal Tributário.
Comecemos pelos excessos de rigor. Tome-se o artigo 168-A, parágrafo 1º, II, do Código Penal, que equipara à apropriação indébita previdenciária a conduta daquele que deixa de “recolher contribuições devidas à previdência social que tenham integrado despesas contábeis ou custos relativos à venda de produtos ou à prestação de serviços”.
Ora, qual tributo não repercute no custo dos produtos ou serviços comercializados pelo agente econômico que o paga? O alcance do dispositivo é muito maior que o do artigo 166 do CTN, limitado ao repasse jurídico dos tributos indiretos, raiando à pura e simples criminalização da inadimplência.
Mesmo a apropriação indébita previdenciária, em sua formulação original (artigo 168-A, caput, do Código Penal), exige temperamento, visto ser fictícia a própria retenção —na prática, o empregador opera com duas obrigações autônomas: o salário líquido e a contribuição, das quais a primeira normalmente tem preferência em caso de escassez de recursos. Acertadas, assim, as decisões que aplicam a tais situações-limites a exclusão da ilicitude (estado de necessidade) ou da culpabilidade (inexigibilidade de conduta diversa).
Resta saber se essa prudência judicial se repetirá quanto à nova lei de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/1998, alterada pela 12.683/2012). Trata-se de indagar se, com a revogação da lista taxativa de crimes antecedentes, a sonegação fiscal se incorporou a tal categoria[5]. Discordando da cara Heloísa Estellita[6], entendemos que não, por termos como certo: (a) que a sonegação fiscal não gera riqueza nova para o contribuinte, apenas mantendo de forma ilícita em suas mãos a parcela que deveria ter transferido ao Estado; e, ademais, (b) que os valores correspondentes ao tributo sonegado não provêm, “direta ou indiretamente, de infração penal”, mas de fato gerador necessariamente lícito (CTN, artigo 3º). Nesse ponto, estamos na tranquilizadora companhia de Misabel Derzi[7].
Uma última demasia reside na criminalização do erro do contribuinte ou da sua discordância com a exegese fazendária das leis fiscais. No lançamento por homologação, como é sabido, incumbe ao particular identificar e interpretar os dispositivos de lei aplicáveis aos fatos que pratica. E isso praticamente por sua conta e risco, pois o único subsídio oficial com que pode contar é o moroso e parcial procedimento de consulta.
Nesse quadro, é possível que erre de boa-fé e é certo que —mesmo tendo razão, o que só se saberá ao fim do processo administrativo ou judicial de discussão da dívida— será posto na condição de inadimplente. O recurso à intimidação penal é descabido em qualquer dos casos (os crimes tributários só se punem na modalidade dolosa: Código Penal, artigo 18, parágrafo único), mas tem sido moeda corrente no âmbito de planejamentos tributários não convalidados ou de discussões tão singelas quanto a da correta classificação contábil de certos bens, para efeito de creditamento do ICMS.
Até aqui, quem desconhecesse os meandros do assunto pensaria que temos um sistema penal-tributário draconiano, implacável. Mas aí intervém o principal fator de seu amolecimento, que de quebra desmarcara a sua verdadeira razão de ser: a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo sonegado.
Deixando de lado a resenha histórica, saltamos direto para o artigo 34 da Lei 9.249/1995, ainda vigente, que condiciona o benefício à quitação à vista, efetuada antes do recebimento da denúncia. A Lei do Refis (Lei 9.964/2000, artigo 15) suspendeu a punibilidade quanto aos tributos incluídos no programa antes do mencionado ato processual, extinguindo-a após a satisfação da última parcela. Forte na retroação benigna e na inaplicabilidade de condição impossível, o STF estendeu os favores aos optantes pelo Refis já denunciados quando da entrada em vigor do diploma[8].
A Lei do PAES (Lei 10.684/2003, artigo 9º) foi ainda mais generosa, ao vincular a suspensão da punibilidade a qualquer parcelamento e ao suprimir a exigência de que a adesão antecedesse o recebimento da denúncia. Aplicando-se inclusive aos parcelamentos ordinários, a flexibilização do marco temporal decerto valia também para o pagamento à vista[9].
A evolução, apesar da leniência crescente, barrou construções ainda mais arrojadas, como a que equiparava o parcelamento à novação, com o condão de extinguir de imediato o débito originário —e, junto com ele, o crime de que fosse objeto. A tese chegou a prevalecer no STJ[10], mas foi abandonada por errônea (a moratória é causa de suspensão, e não de extinção do crédito tributário) e pelos paradoxos cruzados a que expunha o contribuinte e o Fisco: aquele abraçava a novação para fins penais e a repelia enquanto empecilho à rediscussão judicial de débitos confessados, e este —em atitude não menos incoerente— aferrava-se às posições opostas em cada um desses debates.
Recentemente, a Lei 12.382/2011 (ao incluir um parágrafo 2º ao artigo 83 da Lei 9.430/1996) restringiu um pouco o favor legal, restaurando a condição de que o parcelamento, para suspender a punibilidade, seja pedido antes do recebimento da denúncia. Entendemos que assim voltou a ser também para a quitação à vista, dado que a supressão do limite temporal nesse campo se fizera por analogia com o artigo 9º da Lei do PAES, agora tacitamente revogado.
Esta a linha seguida no anteprojeto de Código Penal (artigo 348, parágrafo 4º), que inova ao reconhecer a suspensão da punibilidade também em virtude de ação que combata o lançamento, desde que com garantia idônea (artigo 348, parágrafo 6º).
Em síntese, temos uma legislação e uma prática penais que vão muito além da persecução da falsidade material ou ideológica, compensadas por uma válvula de escape consistente no pagamento ou no parcelamento da dívida, tudo a demonstrar que a finalidade do sistema penal-tributário não é punir o verdadeiro fraudador (o qual, podendo comprar a própria liberdade, mantém a tranquilidade de apostar que não será flagrado), mas reforçar os mecanismos de arrecadação.
Não vamos ao ponto de sustentar que a extinção da punibilidade pelo pagamento seja inconstitucional. A isonomia não é ferida, pois a oportunidade é aberta a todos, e o valor a pagar, via de regra, será proporcional à capacidade de cada um. Mas parece-nos que é inoportuna e deseducadora, pelo menos num ambiente em que a persecução penal se dirigisse unicamente contra a fraude.
Uma derradeira palavra sobre o vínculo entre os processos tributário e penal. A teor da Súmula Vinculante 24 do STF —nem sempre respeitada pela própria Corte...[11] —, a ação criminal só pode ser proposta após o fim do processo administrativo em que se discutem a existência e o valor da dívida.
Pensamos que o entendimento é correto, pois não se pode falar em sonegação antes de saber-se se há tributo, e, a bem da verdade, tímido. A nosso ver, a denúncia deveria aguardar o trânsito em julgado da ação judicial referente ao débito, pois só aí se terá tido a plena cognição dos fatos (porque os Tribunais administrativo são resistentes a perícias) e do direito (porque não julgam constitucionalidade), e só assim se afastará em definitivo o risco de condenação criminal pela evasão de tributo depois declarado inexistente[12].
A agilização por que tem passado o processo civil garantirá que esse necessário aprimoramento não sirva a fins protelatórios.
Sempre soubemos distinguir os bons dos maus. A revolução de que necessitamos consistiria em inverter a lógica atual, de dureza excessiva contra os primeiros e de paternalismo em direção aos outros.

[1] Alexis de Tocqueville, L’Ancien Régime et la Révolution. Paris: Gallimard, 1967, p. 140.
[2] Lei nº 9.478/97 (art. 67) e Decreto nº 2.745/98.
[3] Lei nº 12.462/2011. A inclusão do último fez-se pela Lei nº 12.688/2012.
[4] A ponto de se ter chegado à prescrição com base “na pena em concreto hipotética”, oxímoro depois rechaçado pela Súmula nº 438 do STJ.
[5] Eis a nova redação do tipo penal:
“Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.”
[6] Lavagem de capitais, exercício da advocacia e risco. Consultor Jurídico, 27.09.2012.
http://www.conjur.com.br/2012-set-27/heloisa-estellita-lavagem-capitais-exercicio-advocacia-risco
[7] Alguns aspectos ainda controvertidos relativos aos delitos contra a ordem tributária. In Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 8, nº 31, p. 201-216, jul./set. 2000.
[8] STF, 1ª Turma, RE nº 409.730/PR, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 29.04.2005.
[9] STF, 1ª Turma, HC nº 81.929/RJ, Rel. para o acórdão Min. CEZAR PELUSO, DJ 27.02.2004.
[10] STJ, 3ª Seção, RHC nº 11.598/SC, Rel. Min. GILSON DIP, DJ 02.09.2002.
[11] STF, 1ª Turma, HC nº 108.037/ES, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJ 01/02/2012.
[12] A solução hoje oferecida pelo Código de Processo Penal é insuficiente. Pelo seu art. 92, a ação cível incidental só suspende de forma automática o processo penal se for relativa ao estado das pessoas. Quanto às outras matérias, a suspensão é facultativa e temporalmente limitada (art. 93).
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 3 de outubro de 2012

Fonte: http://www.conjur.com.br/2012-out-03/consultor-tributario-acao-penal-cabe-processo-administrativo

Check-list demissional não é motivo para indenização



A Volkswagen do Brasil obteve decisão favorável da 6ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho para não ter de indenizar um empregado em R$ 8 mil, a título de danos morais. O pagamento havia sido determinado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região, que entendeu ter havido abuso na sujeição do trabalhador ao procedimento de "check-list demissional", que consiste em fazê-lo comparecer a vários setores da empresa para levantamento de pendências.
No TST, o recurso de revista da Volkswagen para eximir-se do dever de indenizar o trabalhador reitera que não estaria efetivamente comprovada a existência de dano moral. Aponta ofensa aos artigos 818, 333, I,do Código de Processo Civil e 186 do Código Civil. A matéria foi conhecida pelo ministro Aloysio Corrêa da Veiga: “"O abuso de direito não pode ser presumido, mas deve restar comprovado nos autos, o que não ocorreu, porque não se vislumbra o quanto o empregado tenha sido exposto a situação causadora de abalo moral ou psíquico"
O empregado pleiteou a indenização alegando que a prática é constrangedora e que enseja exposição prejudicial, além de interferir na autoestima e autoconfiança de quem se submete a ela. A primeira instância da Justiça Trabalhista entendeu de forma diversa e indeferiu o pedido.
O TRT reformou a sentença ao analisar o recurso ajuizado pelo trabalhador, sustentando que a adoção do procedimento configura "abuso de direito do poder diretivo do empregador". No acórdão, consignou que o comparecimento do dispensado em outros setores, quando não tem nada a devolver — como uniforme ou ferramentas — o expõe prejudicialmente perante os colegas que estejam no local, "uma vez que o obriga a receber do encarregado uma espécie de confirmação de que nada deve".
Destacou que compete à empregadora manter registros de todas as entregas, para que, no momento em que o empregado se desliga de seus quadros, já saiba de antemão que material deverá ser devolvido, evitando, assim, que a intimidade, honra, imagem e dignidade do trabalhador sejam violadas.
A matéria foi conhecida e provida de forma unânime. Acrescentou ainda que a Corte vem analisando casos envolvendo o mesmo procedimento praticado pela Volkswagen e que as decisões têm se mostrado uniformes. Com informações da Assessoria de Imprensa do TST.

RR 5200-63.2008.5.09.0670

Fonte: http://www.conjur.com.br/2012-out-03/tst-check-list-demissional-nao-motiva-indenizacao-dano-moral

Brasil: maior mercado consumidor de cocaína da América do Sul


É compreensível a expansão do tráfico de drogas e da criminalidade organizada, visto que o mundo inteiro, incluindo-se o Brasil, constitui hoje e sempre constituiu terreno fértil para sua larga e cada vez mais sofisticada atuação.
Em seu  “Relatório sobre segurança cidadã nas Américas em 2012”, lançado em julho de 2012, a OEA (Organização dos Estados Americanos), dentre outras conclusões, apontou que, com um total de 900 mil usuários, o Brasil representa o maior mercado consumidor de cocaína da América do Sul.
É compreensível a expansão do tráfico de drogas e da criminalidade organizada, visto que o mundo inteiro, incluindo-se o Brasil, constitui hoje e sempre constituiu terreno fértil para sua larga e cada vez mais sofisticada atuação. Conforme notícia baseada no relatório e veiculada pelo jornal O Globo, além de rota internacional, o Brasil também oferece produtos químicos para a indústria do refino da coca. E se não fosse o Brasil, outro país iria oferecer os mesmos produtos.
Diante desse cenário, a discussão quanto à descriminalização ou regulação do uso de drogas no país toma proporções ainda mais controvertidas e efusivas. Porém, incontestável é que a política de repressão e de guerra às drogas não funcionou no Brasil e em nenhum lugar do mundo. Trata-se de uma guerra perdida. Onde há mercado, há oferta de produto. Repressão penal à droga significa contrariar uma regra básica do mercado: lei da oferta e da procura.
De acordo com os levantamentos do Instituto Avante Brasil, baseados nos números do DEPEN – Departamento Penitenciário Nacional, o tráfico de drogas é o crime mais encarcerador do país. Isso porque, do total de 514.582 presos existentes no país em dezembro de 2011, 125.744 (ou 24%) respondem por tráfico (nacional ou internacional) de drogas.
Se considerado apenas o tráfico nacional, o número não deixa de ser chocante, totalizando 119.538 encarcerados (ou 23%). Nos últimos seis anos, as prisões por tráfico cresceram 282% no país, de maneira que o delito tomou o lugar do roubo qualificado (crime responsável pelo maior número de prisões em 2005) e assumiu a primeira colocação em 2011.
Frise-se que a nova Lei de Drogas e Entorpecentes data de 2006, e não foi capaz de diminuir o número de prisões, nem tampouco, conter o tráfico por meios punitivos. O que ocorreu foi exatamente o oposto!
Dessa forma, para aqueles que entendem que a falha reside na falta de repressão, demonstra-se que quase um quarto da população carcerária brasileira ali se encontra por causa de entorpecentes, o que não evitou que o mercado consumidor de cocaína no país se tornasse o pioneiro dentre os países sul-americanos. Preso um, há dez na fila para ocupar o seu lugar.
A violência e a criminalidade geradas pela droga devem ser evitadas com medidas preventivas de conscientização. A política repressiva naufragou, apesar dos bilhões de dólares gastos pelos EUA.  Enquanto o tratamento dado à problemática como um todo se limitar à esfera da segurança e da punição, sem levar em conta as causas da procura e da dependência das drogasd, este será um embate sem fim, com resultados cada vez mais catastróficos. A guerra contra as drogas é uma guerra perdida, por tudo que se viu nos últimos 40 anos. O problema das drogas é muito mais sério do que o populismo penal midiático propaga. Mais uma guerra infinita não dirigida à solução do problema.

Leia mais: http://jus.com.br/revista/texto/22739/brasil-maior-mercado-consumidor-de-cocaina-da-america-do-sul#ixzz28Er0u5MQ

Um só recurso pode ser usado contra mais de uma decisão


Princípio da unirrecorribilidade

Um só recurso pode ser usado contra mais de uma decisão

Por Lúcio Flávio Siqueira de Paiva

O Informativo STJ 503, de 27 de agosto a 6 de setembro de 2012, traz interessante e importante julgado envolvendo a teoria geral dos recursos, mais precisamente o princípio da singularidade ou unirrecorribilidade. Pois que de interesse de todos os profissionais do Direito, notadamente os advogados que diariamente manejam recursos, o precedente do Superior Tribunal de Justiça é merecedor de um estudo mais detalhado.
Com efeito, trata-se de acórdão da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, relatado pela eminente ministra Nancy Andrighi, que por ocasião do julgamento do Recurso Especial 1.112.599-TO, entendeu que não há violação ao princípio da unirrecorribilidade quando a parte, por intermédio do manejo de apenas um único recurso de Agravo de Instrumento, impugna duas distintas decisões interlocutórias. Conforme consta do mencionado Informativo 503, “A Turma, considerando as especificidades do caso, entendeu ser possível a interposição de um único recurso de Agravo de Instrumento para impugnar duas decisões interlocutórias distintas proferidas no mesmo processo”.
Andou bem o STJ ao assim decidir? Essa a resposta que pretendemos oferecer ao final desses breves comentários.
Como se sabe, uma das mais conhecidas regras da teoria geral dos recursos consiste no princípio da unirrecorribilidade, que de acordo com a prestigiosa doutrina de Flávio Cheim Jorge[1], consiste em regra segundo a qual “as decisões judiciais somente são impugnadas por meio de um único recurso”. Pela própria conceituação, com facilidade se percebe que o princípio veda que se interponha, contra a mesma decisão, recursos diferentes. Nada diz, porém, referido princípio, quanto à possibilidade do manejo de um único recurso para a impugnação de duas ou mais decisões distintas, mas proferidas no mesmo processo.
O ponto nodal, pois, da questão é o seguinte: aplica-se o princípio da unirrecorribilidade na mão inversa, proibindo o contraste de duas ou mais decisões por intermédio da interposição de um único recurso?
A questão é polêmica.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, já decidiu que o princípio da unirrecorribilidade teria aplicação na mão inversa. Confira-se o seguinte aresto, oriundo da 2ª Câmara de Direito Privado e relatado pelo eminente desembargador Fábio Tabosa:
Agravo interno. Decisão monocrática que negou seguimento a agravo de instrumento por inobservância do princípio da unicidade recursal. Decisões de Primeiro Grau distintas atacadas por um só recurso de agravo de instrumento. Inadmissibilidade. Decisão monocrática de negativa de seguimento mantida. Agravo interno a que se nega provimento. (Agravante: GAFISA S/A. Agravadas: MÔNICA MARIKO KIMURA e VERÔNICA KIMURA. Agravo de Interno n° 0184248-24.2011.8.26.0000/50000 – Relator FABIO TABOSA)
Colhe-se do voto do eminente relator:
“O agravo não comporta processamento, nos termos em que posto.
Nota-se com efeito que o recurso vem tirado, na verdade, contra duas manifestações judiciais distintas.
O princípio da unicidade recursal, todavia, visto em perspectiva inversa, determina, a par do descabimento de mais de um recurso quanto a uma única decisão, a impossibilidade de abrangência plúrima por um único recurso, devendo a via impugnativa ser dirigida contra uma única decisão em específico.
Se distintas formalmente as manifestações judiciais impugnáveis, contra cada qual deve ser interposto um recurso próprio, não como fez o ora agravante, que a um só tempo se volta contra temas objeto de manifestações diversas.
Ante o exposto, nego seguimento ao agravo, nos termos do art. 557, caput, do Código de Processo Civil”. 
(sem grifos no original)
Também o Tribunal Regional Federal da 1ª Região já esposou entendimento similar:
PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO IMPUGNANDO DUAS DECISÕES. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE RECURSAL. NÃO CONHECIMENTO. 1. Por meio do presente recurso, pretende a agravante reformar duas decisões: uma que recebeu apelação apenas no efeito devolutivo e outra em que foi determinado imediato cumprimento da tutela antecipada (nomeação e posse de candidato aprovado em concurso), sob pena de multa diária no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais). 2. Todavia, a pretensão da agravante de impugnar duas decisões distintas por meio de um único recurso viola o princípio da unirrecorribilidade recursal, pelo qual contra cada decisão é cabível apenas um recurso específico. Precedentes. 3. Agravo de instrumento a que se nega conhecimento.
(7483 BA 2007.01.00.007483-0, Relator: DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO BATISTA MOREIRA, Data de Julgamento: 24/09/2008, QUINTA TURMA, Data de Publicação: 10/10/2008 e-DJF1 p.146)
Igualmente, o Tribunal de Justiça de Pernambuco:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO DE AGRAVO. IMPUGNAÇÃO SIMULTÂNEA DE DUAS DECISÕES EM SEDE DE AGRAVO DE INSTRUMENTO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. RECURSO DESPROVIDO. 1. A irresignação funda-se na alegada possibilidade de se aferir contra qual decisão interlocutória é dirigida a petição de Agravo de Instrumento anteriormente interposto. 2. Observa-se a partir dos autos principais que, apesar de o pedido contido ao cabo da peça recursal ser o de reforma de única decisão, o agravante falha em identificar o ato judicial que pretende modificar, sempre se referindo a duas decisões lesivas aos seus interesses. 3. Viola o princípio da unirrecorribilidade recursal a impugnação de duas decisões por um só recurso. 4. Recurso de agravo desprovido.
(2495521 PE 0014056-10.2011.8.17.0000, Relator: Fernando Cerqueira, Data de Julgamento: 04/10/2011, 7ª Câmara Cível, Data de Publicação: 191)
Como se vê, a jurisprudência pátria se encaminhava para reconhecer a aplicação em mão inversa do princípio da unirrecorribilidade.
Mas não era o melhor entendimento, data venia.
Vedar o manejo, como faz o princípio da unirrecorribilidade, de recursos diferentes contra o mesmo decisum é medida que se justifica e mesmo se impõe, visto que, assim não fosse, estaria instalado o caos na tramitação dos processos. Basta pensar na confusão que ocorreria caso se admitisse, por exemplo, que uma decisão interlocutória pudesse ser desafiada, a um só tempo, por apelação e agravo de instrumento: a apelação demanda a remessa dos autos ao tribunal; o agravo de instrumento, por sua vez, não, além de não obstar, como expressamente dita o artigo 497 do CPC, o andamento do processo em primeiro grau. Seria, pois, impossível compatibilizar o procedimento dos dois recursos.
Por outro lado, não há nada que justifique a proibição da utilização de um único recurso para o contraste de mais de uma decisão. Em verdade, argumentos há que, se não podem ser tomados como incentivo a essa prática, no mínimo a justificam.
O primeiro argumento é também o mais óbvio: simplesmente não há dispositivo legal que vede tal comportamento. Logo, se não é proibido, é permitido, até porque, a teor do artigo 154 do CPC, os atos processuais “não dependem de forma senão quando a lei expressamente a exigir”.
Segundo: não se deve proclamar uma nulidade quando não haja prejuízo às partes e o ato tiver atingido a sua finalidade (CPC, art. 244). No caso, o manejo de um único agravo de instrumento para o contraste de duas decisões interlocutórias não prejudica nem recorrente, nem recorrido, além de não causar qualquer dificuldade extra (muito ao contrário!) à atividade cognitiva do juízo ad quem.
Terceiro: economia e celeridade processuais são princípios que restam atendidos por essa prática, já que por intermédio de um único recurso serão resolvidas duas decisões interlocutórias. Tempo do Judiciário e dinheiro do jurisdicionado que se veem poupados.
Quarto e último argumento: o processo jamais pode ser visto como um fim em si mesmo, de modo que é sempre preferível julgar-se o mérito — no caso, do recurso — que, por questiúnculas processuais, abortar seu processamento.
Assim, a nosso ver, muito bem andou o STJ ao negar ao princípio da unirrecorribilidade aplicação na mão inversa, permitindo-se, por consequência, o contraste de duas ou mais decisões distintas por intermédio de um único recurso. Tomara que esses ventos instrumentalistas continuem soprando no Superior Tribunal de Justiça. Os jurisdicionados agradecem!

Nota de rodapé

[1]FLAVIO CHEIM JORGE, Teoria Geral dos Recursos, Ed Forense, RJ, 2003, pag. 180.
Lúcio Flávio Siqueira de Paiva é advogado e sócio do escritório GMPR — Gonçalves, Macedo, Paiva & Rassi Advogados. Professor de Direito Processual Civil da PUC-GO e da Escola Superior da Magistratura do Estado de Goiás.

Fonte: http://www.conjur.com.br/2012-out-03/lucio-paiva-unico-recurso-usado-decisao