quarta-feira, 31 de outubro de 2012

A Constituição que vigorou por 24 horas no Brasil


Direito Constitucional


Uma Constituição que vigorou no Brasil por 24 horas. Eis uma das possíveis definições para essa importante e quase desconhecida Constituição de Cádiz, aprovada pelas Cortes Gerais e Extraordinárias na Espanha de 1812.[1]
Paulo Bonavides, um dos grandes responsáveis pela divulgação no Brasil (e não apenas neste país) da Constituição de Cádiz, que celebra seu bicentenário este ano, assim relatou as vicissitudes desse texto normativo em nosso território:[2]
“Três vezes a Constituição espanhola de Cádiz, monumento do liberalismo monárquico, teve ingresso efêmero no constitucionalismo luso-brasileiro.”

A primeira vez em Portugal, ao ensejo da rebelião popular de 11 de setembro de 1821, apoiada por forças do exército; houve porém um recuo, de tal sorte que, segundo Aurelino Leal, passaram a vigorar, tão somente, ‘disposições da Constituição espanhola que se referiam ao sistema e processo eleitoral, e com a condição de que as Cortes Constituintes e Extraordinárias convocadas não alterassem na constituição futura de Portugal as suas boas essências e nem admitissem princípios menos liberais’; Leal, Aureliano, ‘História Constitucional do Brasil’, op. cit. PP. 17 e 18.
A segunda vez, na Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, de maneira provisória e nos mesmos termos de sua adoção em Portugal, conforme assinala o sobredito historiador (Leal, Aurelino, op. cit., p. 18). A seguir, pela terceira vez, no Rio de Janeiro, por apenas 24 horas. Decretada no dia 21 de abril foi revogada no dia seguinte, por dois decretos de D. João VI, que escreveu assim, como rei, a página que melhor lhe biografa o caráter, a irresolução e principalmente a covardia da personalidade”.[3]
As raízes da Constituição Gaditana remontam ao início da rebelião contra os franceses, cujas tropas ocupavam a Espanha, no famoso “Levante de 2 de maio de 1808”, ocorrido em Madri e cujos rebeldes foram fuzilados no dia seguinte, como se pode ver no conhecido quadro de Francisco de Goya. Após a derrota dos insurgentes e o massacre francês, Espanha ergueu-se em armas e integrou-se às chamadas “Guerras Peninsulares”, que envolveram tropas francesas, de um lado, e britânicas (e de aliados), portuguesas e espanholas, de outro.
A monarquia espanhola, que inicialmente tentara se compor com Napoleão Bonaparte, dele se tornando aliada e contribuindo com o esforço de guerra, foi traída e os franceses indicaram José Bonaparte para o trono de Espanha.
Num quadro de profunda instabilidade política, com a guerra peninsular ainda em curso, as Cortes Gerais e Extraordinárias foram convocadas e iniciaram a elaboração de um texto constitucional para Espanha. Esse trabalho foi concluído aos 12 de março de 1812, na cidade portuária de Cádiz (de onde partiram os navios franco-espanhóis para a derrota na Batalha de Trafalgar em 1805). Sua vigência foi curta: de 1812 até 1814, quando o rei Fernando VII foi reentronizado e, em momento posterior, repudiou a liberal Constituição de Cádiz.[4]
Mas, o que tem de tão especial esse documento histórico?
O texto gaditano serviu de fonte de inspiração para as constituições liberais do século XX, especialmente a “Constituição vintista” de Portugal,[5] e “sobretudo, o constitucionalismo europeu e ibero-americano que antecedeu a Kelsen (1920)”[6].
A Constituição de Cádiz, por outro lado, formulou uma série de princípios absolutamente inovadores para seu tempo e que repercutiram até nosso século. A ideia de que a soberania “reside esencialmente en la Nación, y por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes fundamentales” (art. 3o) é perturbadora, de modo especial para um tempo em que a legitimidade do poder descansava na vontade de Deus e no direito divino dos monarcas absolutos. Com maior vigor, o artigo 2o também proclamava que: “A nação espanhola é livre e independente, e não é nem pode ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa.”
O objetivo do governo deveria ser a “felicidade da Nação”, porquanto “o fim de toda sociedade política não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem” (art. 13). A natureza “moderada” (não absoluta) da monarquia era estabelecida (art. 14) e a divisão dos poderes restava bem clara na afirmação de que “a potestade de fazer leis reside nas Cortes com o Rei” (art. 15).
No artigo 172, fixavam-se diversas “restrições à autoridade do Rei”, ao exemplo da proibição de que ele impedisse a realização das Cortes e de que ele se ausentasse do Reino sem consentimento parlamentar. Para uma época patrimonialista, não se esqueceram de proibir o monarca de “alienar, ceder ou permutar província, cidade, vila ou lugar, nem parte alguma, por menor que seja, do território espanhol”.
De maneira inédita para os padrões constitucionais do século XIX (e de grande parte do século XX), a Constituição de Cádiz elencava os ministérios do governo, em seu artigo 222. O nível de detalhamento também chegava ao Poder Judiciário, a quem competia, de modo exclusivo, “aplicar as leis nas causas cíveis e criminais” (art. 242), sendo certo que “nem as Cortes, nem o Rei poderão exercer, em nenhum caso, as funções judiciais, avocar causas pendentes, nem mandar abrir juízos extintos” (art. 243).
A defesa da Constituição poderia ser provocada por qualquer cidadão: “Todo espanhol tem direito de representar às Cortes ou ao Rei para reclamar a observância da Constituição” (art. 373). Cabendo às Cortes tomar em consideração “as infrações da Constituição que lhes tiverem sido presentes, para lhes dar o conveniente remédio, e fazer efetiva a responsabilidade dos que tiverem a ela contravindo” (art. 372).
Em seus 384 artigos, a Constituição de Cádiz dedicava títulos à administração das unidades do Reino, à educação pública, às Forças Armadas e às emendas constitucionais. Como salienta Eduarda Chacon, “o artigo 286 preceituava a duração razoável do processo e o artigo 291 assegurava ao cidadão o direito de não produzir provas contra si mesmo. O artigo 296, por sua vez, previa o direito à liberdade mediante pagamento de fiança. Na sequência, o artigo 302 voltava a dispor sobre a legalidade, o artigo 303 proibia a tortura e o artigo 304 vedava o confisco”.[7]
Não é sem causa afirmar que o texto constitucional gaditano corresponde ao conceito moderno de uma “Constituição dirigente”, ao exemplo das constituições vigentes em Portugal e no Brasil. Outro aspecto digno de interesse para os estudiosos contemporâneos está na tese muita vez repetida de que o constitucionalismo liberal do Oitocentos foi sintético e não preocupado com direitos sociais ou com algo além da estrutura do Estado e um catálogo mínimo de direitos fundamentais. Cádiz, quando pouco, deveria figurar como uma saliente exceção a essa tese. Eduardo García de Enterría, com maior elegância e precisão, já o afirmara em um escrito de 1986.[8]
Resta contar um pouco sobre a efemeridade de sua vigência no Brasil, ainda ligado a Portugal por laços coloniais.
O episódio deu-se em abril de 1821, num sábado, dia de eleição dos deputados às Cortes em Portugal, que elaboravam uma nova Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Conforme o relato de Eduarda Chacon, havia grupos favoráveis à permanência de D. João VI no Rio de Janeiro e outros que defendiam a imediata adoção do texto de Cádiz, “enquanto as Cortes Constituintes de Lisboa não concluíssem os seus trabalhos”. E prossegue a autora: “‘Queremos Cádiz!’, gritavam. Diante da reivindicação que lhe foi levada por um grupo do povo, sob chuva torrencial, não viu o Rei opção, senão aceitá-la”.[9]
Naquele alvoroço e com receio de um levante, D. João VI determinou que se observasse no Brasil, enquanto não ultimados os trabalhos constituintes em Portugal, a Constituição de Cádiz.
Os defensores da monarquia absoluta, no entanto, reverteram a situação: “Daí em diante, entusiasmado com o atendimento de sua reivindicação, o povo achou por bem impedir a saída dos navios que levariam a Corte Real de volta a Portugal. Evidentemente, houve forte retaliação e o saldo foi um bom número de mortos. Importa dizer apenas que o episódio serviu para dar força aos soldados que, dirigindo-se ao palácio real, de lá somente se retiraram quando foi assinado um novo decreto, revogando o anterior, (...) no qual constava que sendo a Constituição de Cádiz elaborada por ‘homens mal-intencionados e que queriam a anarquia (…) Hei por bem Determinar, Decretar, y Declarar por nulo o Ato feito ontem’.”[10]
Estudar o texto de Cádiz, para além desse pitoresco episódio da História brasileira, é descobrir que, em pleno alvorecer do século XIX, num tempo de guerra e de ocupação territorial, o grande povo de Espanha (nesse aspecto, simbolizando a latinidade) ofereceu ao mundo um respeitável, inédito e visionário contributo às instituições jurídico-políticas. O desconhecimento de Cádiz diz muito também sobre a visão pouco favorável que temos a nosso próprio respeito. E não apenas no Direito.[11]

[1] Há certa controvérsia em torno da grafia em português do nome dessa cidade espanhola. Em castelhano, escreve-se Cádiz, forma que foi escolhida por este colunista. Existem, porém, os que defendam o uso da forma Cádis.
[2] Paulo Bonavides, desde 2003, tem divulgado e estimulado os estudos sobre a Constituição de Cádiz. Essa é uma matéria de grande importância para o Direito Constitucional Comparado e não tem despertado o merecido interesse na doutrina brasileira contemporânea, com algumas importantes exceções:   CHACON, Eduarda. Bicentenário da Constituição de Cádiz, a primeira carta magna brasileira. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v. 80, p. 418, jul. 2012; BARRETTO, Vicente de Paulo. Viva la pepa: a história não contada da Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 172, n. 452, p. 201-223, jul./set. 2011; CERQUEIRA, Marcelo. A constituição na história : origem & reforma : da Revolução Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. rev. e ampl. até a Emenda Constitucional nº 52/2006. Rio de Janeiro : Revan, 2006; BONAVIDES, Paulo. O constitucionalismo espanhol e seu influxo no Brasil : de Cádiz a Moncloa. In. AA.VV. La Constitución de 1978 y el constitucionalismo iberoamericano. Madrid : Ministério de la Presidencia, Secretaria General Técnica : Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003, p. 197-219.
[3] BONAVIDES, Paulo.  As nascentes do constitucionalismo luso-brasileiro, uma análise comparativa. p. 197-235 (nota de rodapé 22). Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1510/9.pdf. Acesso em 26-10-2012.
[4] MORAES, Oswaldo de. Formação do estado federal brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 55, n. 368, p. 12-23, jun. 1966.
[5] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos avançados. v.14, n. 40, São Paulo set.-dez. 2000.
[6] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[7] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[8] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun. 1986.
[9] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[10] CHACON, Eduarda. Op. cit., loc. cit.
[11] É de ser registrado que, na abertura do 8º Fórum Parlamentar Ibero-Americano, ocorrido em Cádiz, Espanha, aos 24 de outubro de 2012, José Sarney, presidente do Senado Federal, enalteceu o papel da Constituição de Cádiz na formação constitucional brasileira: “Quando falamos em separação dos poderes, em representação popular, em garantias individuais, como a de não ser preso sem ordem judicial, a proibição de tortura e confisco de bens, a inalienabilidade da casa própria, a liberdade de expressão e, na própria noção de soberania, estamos, mesmo sem saber, repetindo os homens que, aqui, no dia 19 de março de 1812, proclamaram ao mundo a Constituição das Liberdades” (Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/24/na-espanha-sarney-reafirma-importancia-da-constituicao-de-cadis. Acesso em 25-10-2012).
Otavio Luiz Rodrigues Junior é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).
Disponível em http://www.conjur.com.br/2012-out-31/direito-comparado-constituicao-vigorou-24-horas-brasil


Mensalão e a telemidiatização da Justiça

Artigo do dia

Se o STF flertava —  já há algum tempo — com sua incondicionada adesão à era do populismo penal midiático, típico da sociedade do espetáculo (Debord), agora não existe mais dúvida. Sejam todos bem-vindos ao mundo do espetáculo judicial telemidiático. Como funciona a Justiça telemidiatizada? Não quero valorar, apenas descrever.
Em primeiro lugar, já não podemos falar em processo, sim, em teleprocesso. Não temos mais juízes, sim, telejuízes. Não mais sessões, sim, telesessões. Não mais votos, sim, televotos. Não mais o público, sim, teleaudiência. Se no campo das democracias populistas latino-americanas o que prepondera é o telepresidente, na era da Justiça telemidiatizada o que temos é o telerrelatortelerrevisor etc.
Não há dúvida de que com o telejulgamento ganhamos em espetáculo (estética), mas corre-se sempre o risco de se perder em segurança, porque o poder dos holofotes pode fazer da prudência, do equilíbrio e da sensatez estrelas que brilham pela ausência. 
A Justiça se tornou muito mais percebida. Agora conta com teleaudiência, com rating. Para usar um bordão famoso, nunca na história deste país os ministros se tornaram conhecidos pelos seus nomes, que estão se transformando em marcas (estrelas midiáticas) e, desta forma, começam a ter um alto valor político-mercadológico.
A espetacularização da Justiça populista não é uma vara mágica que resolva seus conhecidos problemas, ao contrário, a telejustiça é muito mais morosa e, tal como uma telenovela, gasta um semestre para desenvolver o enredo de um teleprocesso (prejudicando o andamento de centenas de outros).

O STF, na sua nova função de telejulgador populista, está lavando a alma do povo brasileiro (disse um órgão midiático). E também nos proporciona (como toda televisão) tele-entretenimento, com acalorados “bate-bocas”, entrecortados por suaves e inteligentes telemensagens de Ayres Britto do tipo “o voto minerva me enerva”.
A Justiça telemidiatizada não soluciona o problema do pão da população, mas pode contribuir muito para a fermentação do circo. Por quê? Porque não se pode esquecer que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa(alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Nietzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximado da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer.
O STF acaba de sucumbir definitivamente às racionalidades da sociedade do espetáculo. Resta saber se ainda vão remanescer lampejos de serenidade para impedir que princípios jurídicos clássicos como o da legalidade, proibição de retroatividade da lei penal mais severa etc não se tornem meros tigres de papel.
Na medida em que a Justiça começa a se comunicar diretamente com a opinião pública, valendo-se da mídia, ganham notoriedade tanto os rasteiros anseios populares de justiça (cadeia para todo mundo, prisão preventiva imediata, recolhimento sem demora dos passaportes dos condenados, fim dos recursos, ignorem a justiça internacional) como a preocupação de se usar uma retórica populista, bem mais compreensível pelo “povão” (“réus bandidos”, “políticos bandoleiros”, “a pena não pode ficar barata”, “Vossa Excelência advogado para o réu” etc).
Frenesi generalizado, porque agora o paradigma é outro, é o emotivo, o voluntarista, o performático. O telejuiz deixa de ser um terceiro equidistante para se transformar num ator midiático, daí a lógica dos reiterados pedidos — entre eles — de réplica e tréplica, que denotam perfil de parte (falando com o seu público).
O maior temor, nesse contexto, é o de que esses novos personagens da telejustiça deixem de cumprir o sagrado papel democrático de balança contramajoritária. Não poucas vezes, como sublinha com frequência o ministro Gilmar Mendes, para fazer justiça o juiz tem que decidir contra a vontade da maioria. Mas como contrariar a maioria quando a telejustiça assume a lógica das democracias populistas de opinião?
São novos megadesafios para os novos supertelejuízes, que ainda devem recordar que, no campo do direito penal, a convicção de que a voz do povo é a voz de Deus constitui um risco incomensurável. As balizas da Justiça, quando deixadas sob o comando do povo ou da pura emoção, ficam totalmente cegas (a história de Jesus Cristo que o diga).

Aos tradicionais quatro “pês” que habitam nossas cadeias (pobre, preto, prostituta e policiais) a telejustiça está agregando uma quinta categoria, constituída dos políticos e seus satélites orbitais (banqueiros, bicheiros, construtores, dirigentes petistas, tucanos privataristas etc).   Não há como não reconhecer que os teleprocessos são altamente politizados. Mas nem por isso devem revigorar nossa memória, como bem sublinhou Tarso Genro, sobre a hipotética ou real manchete de um jornal soviético, da era stalinista, que dizia: “Hoje serão julgados e condenados os assassinos de Kirov”. Será que a era da telejustiça protagonizada por supertelejuízes será capaz de nos proporcionar um mundo melhor e mais justo? 
*Luiz Flávio Gomes, jurista, foi promotor de justiça (1980-83), juiz (1983-1998) e advogado (1999-2001). www.professorlfg.com.br