Direito Constitucional
Uma Constituição que
vigorou no Brasil por 24 horas. Eis uma das possíveis definições para essa
importante e quase desconhecida Constituição de Cádiz, aprovada pelas Cortes
Gerais e Extraordinárias na Espanha de 1812.[1]
Paulo Bonavides, um
dos grandes responsáveis pela divulgação no Brasil (e não apenas neste país) da
Constituição de Cádiz, que celebra seu bicentenário este ano, assim relatou as
vicissitudes desse texto normativo em nosso território:[2]
“Três vezes a Constituição espanhola de Cádiz, monumento do liberalismo
monárquico, teve ingresso efêmero no constitucionalismo luso-brasileiro.”
A primeira vez em
Portugal, ao ensejo da rebelião popular de 11 de setembro de 1821, apoiada por
forças do exército; houve porém um recuo, de tal sorte que, segundo Aurelino
Leal, passaram a vigorar, tão somente, ‘disposições da Constituição espanhola
que se referiam ao sistema e processo eleitoral, e com a condição de que as
Cortes Constituintes e Extraordinárias convocadas não alterassem na
constituição futura de Portugal as suas boas essências e nem admitissem
princípios menos liberais’; Leal, Aureliano, ‘História Constitucional do
Brasil’, op. cit. PP. 17 e 18.
A segunda vez, na
Bahia, em 10 de fevereiro de 1821, de maneira provisória e nos mesmos termos de
sua adoção em Portugal, conforme assinala o sobredito historiador (Leal,
Aurelino, op. cit., p. 18). A seguir, pela terceira vez, no Rio de Janeiro, por
apenas 24 horas. Decretada no dia 21 de abril foi revogada no dia seguinte, por
dois decretos de D. João VI, que escreveu assim, como rei, a página que melhor
lhe biografa o caráter, a irresolução e principalmente a covardia da
personalidade”.[3]
As raízes da
Constituição Gaditana remontam ao início da rebelião contra os franceses, cujas
tropas ocupavam a Espanha, no famoso “Levante de 2 de maio de 1808”, ocorrido
em Madri e cujos rebeldes foram fuzilados no dia seguinte, como se pode ver no conhecido quadro de Francisco de Goya. Após a derrota dos insurgentes
e o massacre francês, Espanha ergueu-se em armas e integrou-se às chamadas
“Guerras Peninsulares”, que envolveram tropas francesas, de um lado, e
britânicas (e de aliados), portuguesas e espanholas, de outro.
A monarquia
espanhola, que inicialmente tentara se compor com Napoleão Bonaparte, dele se
tornando aliada e contribuindo com o esforço de guerra, foi traída e os
franceses indicaram José Bonaparte para o trono de Espanha.
Num quadro de
profunda instabilidade política, com a guerra peninsular ainda em curso, as
Cortes Gerais e Extraordinárias foram convocadas e iniciaram a elaboração de um
texto constitucional para Espanha. Esse trabalho foi concluído aos 12 de março
de 1812, na cidade portuária de Cádiz (de onde partiram os navios
franco-espanhóis para a derrota na Batalha de Trafalgar em 1805). Sua vigência
foi curta: de 1812 até 1814, quando o rei Fernando VII foi reentronizado e, em
momento posterior, repudiou a liberal Constituição de Cádiz.[4]
Mas, o que tem de tão
especial esse documento histórico?
O texto gaditano
serviu de fonte de inspiração para as constituições liberais do século XX,
especialmente a “Constituição vintista” de Portugal,[5] e “sobretudo, o constitucionalismo
europeu e ibero-americano que antecedeu a Kelsen (1920)”[6].
A Constituição de
Cádiz, por outro lado, formulou uma série de princípios absolutamente
inovadores para seu tempo e que repercutiram até nosso século. A ideia de que a
soberania “reside esencialmente en la Nación, y
por lo mismo pertenece a ésta exclusivamente el derecho de establecer sus leyes
fundamentales” (art. 3o) é perturbadora, de modo especial para um tempo em
que a legitimidade do poder descansava na vontade de Deus e no direito divino
dos monarcas absolutos. Com maior vigor, o artigo 2o também proclamava que: “A nação espanhola é livre e independente, e não
é nem pode ser patrimônio de nenhuma família ou pessoa.”
O objetivo do governo
deveria ser a “felicidade da Nação”, porquanto “o fim de toda sociedade política
não é outro que o bem-estar dos indivíduos que a compõem” (art. 13). A natureza
“moderada” (não absoluta) da monarquia era estabelecida (art. 14) e a divisão
dos poderes restava bem clara na afirmação de que “a potestade de fazer leis
reside nas Cortes com o Rei” (art. 15).
No artigo 172,
fixavam-se diversas “restrições à autoridade do Rei”, ao exemplo da proibição
de que ele impedisse a realização das Cortes e de que ele se ausentasse do
Reino sem consentimento parlamentar. Para uma época patrimonialista, não se
esqueceram de proibir o monarca de “alienar, ceder ou permutar província,
cidade, vila ou lugar, nem parte alguma, por menor que seja, do território
espanhol”.
De maneira inédita
para os padrões constitucionais do século XIX (e de grande parte do século XX),
a Constituição de Cádiz elencava os ministérios do governo, em seu artigo 222.
O nível de detalhamento também chegava ao Poder Judiciário, a quem competia, de
modo exclusivo, “aplicar as leis nas causas cíveis e criminais” (art. 242), sendo
certo que “nem as Cortes, nem o Rei poderão exercer, em nenhum caso, as funções
judiciais, avocar causas pendentes, nem mandar abrir juízos extintos” (art.
243).
A defesa da
Constituição poderia ser provocada por qualquer cidadão: “Todo espanhol tem direito
de representar às Cortes ou ao Rei para reclamar a observância da Constituição”
(art. 373). Cabendo às Cortes tomar em consideração “as infrações da
Constituição que lhes tiverem sido presentes, para lhes dar o conveniente
remédio, e fazer efetiva a responsabilidade dos que tiverem a ela contravindo”
(art. 372).
Em seus 384 artigos,
a Constituição de Cádiz dedicava títulos à administração das unidades do Reino,
à educação pública, às Forças Armadas e às emendas constitucionais. Como
salienta Eduarda Chacon, “o artigo 286 preceituava a duração razoável do
processo e o artigo 291 assegurava ao cidadão o direito de não produzir provas
contra si mesmo. O artigo 296, por sua vez, previa o direito à liberdade
mediante pagamento de fiança. Na sequência, o artigo 302 voltava a dispor sobre
a legalidade, o artigo 303 proibia a tortura e o artigo 304 vedava o confisco”.[7]
Não é sem causa afirmar
que o texto constitucional gaditano corresponde ao conceito moderno de uma
“Constituição dirigente”, ao exemplo das constituições vigentes em Portugal e
no Brasil. Outro aspecto digno de interesse para os estudiosos contemporâneos
está na tese muita vez repetida de que o constitucionalismo liberal do
Oitocentos foi sintético e não preocupado com direitos sociais ou com algo além
da estrutura do Estado e um catálogo mínimo de direitos fundamentais. Cádiz,
quando pouco, deveria figurar como uma saliente exceção a essa tese. Eduardo
García de Enterría, com maior elegância e precisão, já o afirmara em um escrito
de 1986.[8]
Resta contar um pouco
sobre a efemeridade de sua vigência no Brasil, ainda ligado a Portugal por
laços coloniais.
O episódio deu-se em
abril de 1821, num sábado, dia de eleição dos deputados às Cortes em Portugal,
que elaboravam uma nova Constituição para o Reino Unido de Portugal, Brasil e
Algarves. Conforme o relato de Eduarda Chacon, havia grupos favoráveis à
permanência de D. João VI no Rio de Janeiro e outros que defendiam a imediata
adoção do texto de Cádiz, “enquanto as Cortes Constituintes de Lisboa não concluíssem
os seus trabalhos”. E prossegue a autora: “‘Queremos Cádiz!’, gritavam. Diante
da reivindicação que lhe foi levada por um grupo do povo, sob chuva torrencial,
não viu o Rei opção, senão aceitá-la”.[9]
Naquele alvoroço e
com receio de um levante, D. João VI determinou que se observasse no Brasil,
enquanto não ultimados os trabalhos constituintes em Portugal, a Constituição
de Cádiz.
Os defensores da
monarquia absoluta, no entanto, reverteram a situação: “Daí em diante,
entusiasmado com o atendimento de sua reivindicação, o povo achou por bem
impedir a saída dos navios que levariam a Corte Real de volta a Portugal.
Evidentemente, houve forte retaliação e o saldo foi um bom número de mortos.
Importa dizer apenas que o episódio serviu para dar força aos soldados que,
dirigindo-se ao palácio real, de lá somente se retiraram quando foi assinado um
novo decreto, revogando o anterior, (...) no qual constava que sendo a
Constituição de Cádiz elaborada por ‘homens mal-intencionados e que queriam a
anarquia (…) Hei por bem Determinar, Decretar, y Declarar por nulo o Ato feito
ontem’.”[10]
Estudar o texto de
Cádiz, para além desse pitoresco episódio da História brasileira, é descobrir
que, em pleno alvorecer do século XIX, num tempo de guerra e de ocupação
territorial, o grande povo de Espanha (nesse aspecto, simbolizando a
latinidade) ofereceu ao mundo um respeitável, inédito e visionário contributo
às instituições jurídico-políticas. O desconhecimento de Cádiz diz muito também
sobre a visão pouco favorável que temos a nosso próprio respeito. E não apenas
no Direito.[11]
[1] Há certa controvérsia em torno da grafia em português do nome dessa
cidade espanhola. Em castelhano, escreve-se Cádiz, forma que foi escolhida por
este colunista. Existem, porém, os que defendam o uso da forma Cádis.
[2] Paulo Bonavides, desde 2003, tem divulgado e estimulado os estudos sobre
a Constituição de Cádiz. Essa é uma matéria de grande importância para o
Direito Constitucional Comparado e não tem despertado o merecido interesse na
doutrina brasileira contemporânea, com algumas importantes
exceções: CHACON, Eduarda. Bicentenário da Constituição de Cádiz, a
primeira carta magna brasileira. Revista de
Direito Constitucional e Internacional, v. 80, p. 418, jul. 2012;
BARRETTO, Vicente de Paulo. Viva la pepa: a história não contada da
Constitución española de 1812 em terras brasileiras. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 172, n. 452, p.
201-223, jul./set. 2011; CERQUEIRA, Marcelo. A
constituição na história : origem & reforma : da Revolução
Inglesa de 1640 à crise do Leste Europeu. 2. ed. rev. e ampl. até a Emenda
Constitucional nº 52/2006. Rio de Janeiro : Revan, 2006; BONAVIDES, Paulo.
O constitucionalismo espanhol e seu influxo no Brasil : de Cádiz a
Moncloa. In. AA.VV. La Constitución de 1978 y el
constitucionalismo iberoamericano. Madrid : Ministério de la
Presidencia, Secretaria General Técnica : Centro de Estudios Políticos y
Constitucionales, 2003, p. 197-219.
[3] BONAVIDES, Paulo. As nascentes do constitucionalismo
luso-brasileiro, uma análise comparativa. p. 197-235 (nota de rodapé 22).
Disponível em http://biblio.juridicas.unam.mx/libros/4/1510/9.pdf.
Acesso em 26-10-2012.
[4] MORAES, Oswaldo de. Formação do estado federal brasileiro. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 55, n. 368, p. 12-23,
jun. 1966.
[5] BONAVIDES, Paulo. A evolução constitucional do Brasil. Estudos avançados. v.14, n. 40, São Paulo set.-dez.
2000.
[8] GARCIA DE ENTERRIA, Eduardo. Constituição como norma. Revista de Direito Público, v. 19, n. 78, p. 5-17, abr./jun.
1986.
[11] É de ser registrado que, na abertura do 8º Fórum Parlamentar
Ibero-Americano, ocorrido em Cádiz, Espanha, aos 24 de outubro de
2012, José Sarney, presidente do Senado Federal, enalteceu o papel da
Constituição de Cádiz na formação constitucional brasileira: “Quando falamos em
separação dos poderes, em representação popular, em garantias individuais, como
a de não ser preso sem ordem judicial, a proibição de tortura e confisco de
bens, a inalienabilidade da casa própria, a liberdade de expressão e, na
própria noção de soberania, estamos, mesmo sem saber, repetindo os homens que,
aqui, no dia 19 de março de 1812, proclamaram ao mundo a Constituição das
Liberdades” (Disponível em: http://www12.senado.gov.br/noticias/materias/2012/10/24/na-espanha-sarney-reafirma-importancia-da-constituicao-de-cadis.
Acesso em 25-10-2012).
Otavio Luiz Rodrigues Junior é
advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito
Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture
Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho
Romano (Oviedo, Espanha).
Disponível
em http://www.conjur.com.br/2012-out-31/direito-comparado-constituicao-vigorou-24-horas-brasil
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