DIREITO CIVIL
A questão da alteração no Registro Civil da condição do indivíduo que modificou cirurgicamente o seu sexo ainda fomenta discussões entre os estudiosos do Direito Civil.
A ausência de regulamentação específica
no ordenamento jurídico brasileiro, por sua vez, apenas contribui para a
disparidade nas decisões judiciais acerca do tema em liça. Desta forma, é
necessário verificar se o direito brasileiro alberga, ou não, a possibilidade
de, em tendo sido feita a cirurgia de redesignação sexual, poder-se alterar a
sua condição também no Registro Civil, tanto no que respeita ao nome e prenome
do indivíduo, como igualmente no que tange à indicação do sexo constante no
assento registral.
Neste sentido, é importante acentuar
que o transexual, para a medicina, é a pessoa que sofre de um transtorno de
identidade de gênero permanente, razão pela qual o transexualismo encontra-se,
inclusive, relacionado no CID (Classificação Internacional de Doenças). Tal
transtorno, de ordem psicológica e médica, trata-se de uma condição em que a
pessoa nasce com um determinado sexo biológico, mas se identifica com os
indivíduos pertencentes ao gênero oposto, o que o leva a um profundo
desconforto, decorrente da dissociação entre o sexo físico e aquele outro ao
qual julga pertencer, com repulsa ao fenótipo apresentado e propensão à
autoimolação e ao autoextermínio.
No Brasil, os critérios para a
realização da cirurgia de mudança (ou adequação de sexo) são atualmente
estabelecidos pelo Conselho Federal de Medicina, nos termos da Resolução nº
1.652/2002, que revogou a anterior regulamentação do CFM – a Resolução nº
1.482/97[1].
A Resolução nº 1.652/2002, de seu turno, autorizou a realização da cirurgia de transgenitalização
do tipo neocolpovulvoplastia (transformação do fenótipo masculino para
feminino) e, ainda em caráter experimental, da cirurgia do tipo neofaloplastia
(transformação do fenótipo feminino para o masculino). Ressalte-se que é a
avaliação médica específica que identifica o transexualismo[2] e que permite conferir o subsídio necessário à
realização da cirurgia, a qual exige, consoante a Resolução nº 1.652/2002, uma
série de requisitos prévios para a sua autorização[3], como é o caso
do acompanhamento médico multidisciplinar para demonstração da necessidade do
procedimento cirúrgico pleiteado.
Postas
essas considerações, é relevante parametrizar que há posições diametralmente
opostas no tocante à possibilidade jurídica quanto à alteração do Registro
Civil do indivíduo submetido à cirurgia de redesignação sexual.
De
um lado, há os que defendem a impossibilidade de alteração, como foi o caso de
julgado do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), o qual se fundou
primordialmente em três aspectos para concluir pelo indeferimento do pedido de
alteração do assento: em primeiro lugar, que haveria impossibilidade de
designação do transexual como mulher, em segundo lugar, que a regra é a
inalterabilidade do Registro Civil e, por fim, que tal posicionamento se
justificaria também para proteção de terceiros quanto a um futuro matrimônio.
Nesse sentido, portanto, colige-se o acórdão:
DIREITO DE FAMÍLIA - RETIFICAÇÃO DE ASSENTO DE
NASCIMENTO - ALTERAÇÃO DE GÊNERO - TRANSEXUAL - IMPOSSIBILIDADE. A PARTIR DA REALIZAÇÃO
DE CIRURGIA DE TRANSGENITALIZAÇÃO, SURGE UM DOS PRINCIPAIS PROBLEMAS JURÍDICOS
ATUAIS, QUAL SEJA, A POSSIBILIDADE DE REDESIGNAÇÃO, OU ADEQUAÇÃO, DO SEXO
CIVIL, REGISTRADO, AO SEXO PSICOLÓGICO, NOVO SEXO ANATÔMICO, E OS EFEITOS DAÍ
RESULTANTES. NÃO HÁ, NEM JAMAIS HAVERÁ, POSSIBILIDADE DE TRANSFORMAR UM
INDIVÍDUO NASCIDO HOMEM EM UMA MULHER, OU VICE VERSA. POR MAIS QUE ESSE
INDIVÍDUO SE PAREÇA COM O SEXO OPOSTO E SINTA-SE COMO TAL, SUA CONSTITUIÇÃO
FÍSICA INTERNA PERMANECERÁ SEMPRE INALTERADA. ASSIM, AFIGURA-SE INDEVIDA A
RETIFICAÇÃO DO ASSENTO DE NASCIMENTO DE TRANSEXUAL REDESIGNADO, MORMENTE PARA
SALVAGUARDAR DIREITO DE TERCEIROS QUE PODEM INCORRER EM ERRO ESSENCIAL QUANDO A
PESSOA DO TRANSEXUAL, NA HIPÓTESE DE ENLACE MATRIMONIAL.
(Apelação Cível
1.0024.07.595060-0/001, Rel. Des.(a) Dárcio Lopardi Mendes, 4ª CÂMARA
CÍVEL, julgamento em 26/03/2009, publicação da súmula em 07/04/2009)
De
outro lado, encontra-se a corrente que entende ser juridicamente admissível a
alteração no registro civil do transexual que realizou a cirurgia, entendimento
esse alicerçado pelo Superior Tribunal de Justiça. Em caso paradigmático, de
relatoria do memorável Ministro Menezes Direito[4], foi adotada
posição favorável à alteração do registro civil, com esteio no princípio da
dignidade da pessoa humana.
Com
efeito, este princípio, que ostenta a condição de fundamento da República
Federativa do Brasil, refere-se, de acordo com Alexandre de Moraes, a “um valor
espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na
autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a
pretensão ao respeito por parte das demais pessoas”[5].
Nessa
toada, Ingo Sarlet[6] assevera que restrições ao princípio da Dignidade
da Pessoa Humana somente são admissíveis quando houver conflito direto entre as
dignidades de pessoas diversas. A contrario sensu, portanto, em havendo
unicamente a necessidade de preservação da Dignidade do indivíduo transexual, é
de se concluir pela possibilidade de alteração do registro civil.
Cabe
ao Judiciário analisar o pedido proposto de alteração do assento, em razão da
cirurgia realizada, tanto no que diz respeito ao nome, quando no tocante ao
sexo do indivíduo.
O
nome civil é a forma pela qual se identificam as pessoas naturais nos aspectos
da sua vida familiar e social, estando assim diretamente ligado com a
individualização da pessoa e, por isso, aos direitos da personalidade.
Desta
maneira, em sendo a identidade pessoal uma garantia da dignidade da pessoa
humana, percebe-se que não há como afastar a correlação entre tais preceitos.
Sobre a questão, percebe-se que a Lei nº 6.015/73, em seus artigos 57 e 58,
previu a relativa imutabilidade do nome. É o teor dos dispositivos, in verbis:
Art.
57 - Qualquer alteração posterior de nome, somente por exceção e motivadamente,
após audiência do Ministério Público, será permitida por sentença do juiz a que
estiver sujeito o registro, arquivando-se o mandato e publicando-se a alteração
pela imprensa.
[...]
Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se,
todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios.
Desta
feita, sendo o direito ao nome uma das expressões do direito da personalidade,
a possibilidade de o juiz permitir a alteração apresenta-se como sendo a
posição consentânea com o asseguramento de tais princípios inerentes à pessoa
humana. Por sua vez, é certo que de nada adiantará a alteração do nome sem a
alteração formal do sexo, porquanto tal situação continuaria a perpetuar a
angústia psicológica do indivíduo transexual.
Neste
ponto, há dissonância entre julgados que admitem a modificação do registro de
nascimento. De um lado, há os que se posicionam que deverá haver a inclusão no
registro civil da denominação “transexual”[7], ao passo que outros
entendem que poderá haver a inclusão do sexo para qual foi procedida a mudança,
fazendo-se referência à margem do assento que a alteração foi procedida por
determinação judicial[8].
Esta
última corrente, que admite não apenas a alteração do registro civil para
modificação do nome, como igualmente do sexo para o qual foi realizada a
redesignação sexual, é a que se afigura mais coerente com a linha de raciocínio
que vem sendo deslindada, referente à preservação do princípio constitucional
da Dignidade da Pessoa Humana.
De
fato, não obstante a primeira posição (que admite a modificação do sexo para
“transexual”) constitua-se em uma evolução em face da negativa da alteração do
sexo no registro, ela não consegue atender ao princípio no qual alega se
fundar, uma vez que há verdadeiro prolongamento da negativa quando se impinge a
classificação de “transexual” no registro civil, assim como dos danosos efeitos
para o indivíduo, decorrentes da não identificação com o seu gênero biológico.
Assim,
a tutela jurisdicional, para ser completa e corresponder ao efetivo atendimento
do princípio da intangibilidade da pessoa humana, requer a alteração do nome e
do sexo, ainda que seja feita a referência de que houve alteração por ordem
judicial, a ser procedida unicamente no assento de nascimento, preservando,
deste modo, o interesse de terceiros, bem como o direito à intimidade, à vida
privada, à honra, à saúde e à imagem do indivíduo submetido à cirurgia de
redesignação sexual.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CENEVIVA, Walter. Lei dos
Registros Públicos Comentada. 19ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
DIAS, Maria Berenice. União
Homossexual, 2ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA
FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Parte Geral, vol.
1, 11ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO,
Inocêncio e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito
Constitucional, 4ª ed., São Paulo: Saraiva, 2009.
MORAES, Alexandre. Constituição
do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª ed. atualizada até
EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007.
VIEIRA, Tereza Rodrigues. Nome
e Sexo – Mudanças no Registro Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2008.
Notas
[1] Deve-se
registrar que, nos termos da Resolução nº 1.482/97, ambas as modalidades de
cirurgia de transgenitalização foram autorizadas a título experimental, como
tratamento dos casos de transexualismo.
[2] Quanto
aos critérios para o reconhecimento do transexualismo a Resolução nº
1.652/2002, previu, em seu artigo 3º, que a definição de transexualismo
obedecerá, no mínimo, aos critérios abaixo enumerados:
1) Desconforto com o sexo anatômico
natural;
2) Desejo expresso de eliminar os
genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e
ganhar as do sexo oposto;
3) Permanência desses distúrbios de
forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos;
4) Ausência de outros transtornos
mentais.
[3] Art.
4º Que a seleção dos pacientes para cirurgia de transgenitalismo obedecerá a
avaliação de equipe multidisciplinar constituída por médico psiquiatra,
cirurgião, endocrinologista, psicólogo e assistente social, obedecendo os
critérios abaixo definidos, após, no mínimo, dois anos de acompanhamento
conjunto: 1) Diagnóstico médico de transgenitalismo;
2) Maior de 21 (vinte e um) anos;
3) Ausência de características
físicas inapropriadas para a cirurgia.
Art. 5º Que as cirurgias para adequação
do fenótipo feminino para masculino só poderão ser praticadas em hospitais
universitários ou hospitais públicos adequados para a pesquisa.
Art. 6º Que as cirurgias para adequação
do fenótipo masculino para feminino poderão ser praticadas em hospitais
públicos ou privados, independente da atividade de pesquisa.
Parágrafo 1º - O Corpo Clínico destes
hospitais, registrado no Conselho Regional de Medicina, deve ter em sua
constituição os profissionais previstos na equipe citada no artigo 4º, aos
quais caberá o diagnóstico e a indicação terapêutica. Parágrafo 2º - As
equipes devem ser previstas no regimento interno dos hospitais, inclusive
contando com chefe, obedecendo os critérios regimentais para a ocupação do
cargo.
Parágrafo 3º - A qualquer ocasião, a
falta de um dos membros da equipe ensejará a paralisação de permissão para
execução dos tratamentos.
Parágrafo 4º - Os hospitais deverão ter
Comissão Ética constituída e funcionando dentro do previsto na legislação
pertinente.
Art. 7º Deve ser praticado o
consentimento livre e esclarecido.
[4] Mudança
de sexo. Averbação no registro civil. 1. O recorrido quis seguir o seu destino,
e agente de sua vontade livre procurou alterar no seu registro civil a sua
opção, cercada do necessário acompanhamento médico e de intervenção que lhe
provocou a alteração da natureza gerada. Há uma modificação de fato que se não
pode comparar com qualquer outra circunstância que não tenha a mesma origem. O
reconhecimento se deu pela necessidade de ferimento do corpo, a tanto, como se
sabe, equivale o ato cirúrgico, para que seu caminho ficasse adequado ao seu
pensar e permitisse que seu rumo fosse aquele que seu ato voluntário revelou
para o mundo no convívio social. Esconder a vontade de quem a manifestou
livremente é que seria preconceito, discriminação, opróbrio, desonra,
indignidade com aquele que escolheu o seu caminhar no trânsito fugaz da vida e
na permanente luz do espírito. 2. Recurso especial conhecido e provido. (REsp
678.933/RS, Rel. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, 3ª T., julgado
em 22/03/2007, DJ 21/05/2007, p. 571)
[5] MORAES,
Alexandre. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 7ª
ed. atualizada até EC nº 55/07. São Paulo: Atlas, 2007, págs. 60-61.
[6] SARLET,
Ingo. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição de
1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2004, especialmente p.
124-141, apud MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio e BRANCO, Paulo
Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 4ª ed. rev. e atual., São
Paulo: Saraiva, 2009, pág. 174.
[7] Nesse
sentido, os seguintes julgados: TJRS - Ap. Cív. 591019831, rel. Des. Gervásio
Barcellos, j. 5-6-1991; TJRS - Ap. Cív. 598404887, rel. Des. Eliseu Gomes
Torres, j. 31-5-2000, citados por DIAS, Maria Berenice. União Homossexual, 2ª
ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, págs. 278-282.
[8] TJSP
– Ap. Cív. 439.257-4/3-00, rel. Des. Salles Rossi, 8ª Câmara de D. Privado, j.
19-4-2007; TJSP Ap. Cív. 492.524-4/0-00, rel. Des. Ary José Bauer Júnior, 2ª
Câmara de D. Privado, j. 3-7-2007; TJSP – Ap. Cív. 427.435-4/3, rel. Des.
Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D. Privado, j. 11-11-2008. TJSP – Ap. Cív.
617.871-4/2, rel. Des. Maia da Cunha, 4ª Câmara de D. Privado, j. 19-02-2009;
TJSP – Ap. Cív. 514.688-4/6, Rel. Des. Maurício Vidigal, 10ª Câmara de D.
Privado, j. 31-3-2009.
Procuradora Federal. Pós-Graduada em
Direito Civil. Graduada em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
(UFPE).